Na porta dos supermercados ou nos pátios de bombas de combustível o episódio repete-se. Meninos e meninas aproximam-se com a naturalidade de quem aprendeu cedo a pedir para sobreviver. Há idosos, sobretudo mulheres, que trazem crianças ao colo ou pelas mãos. Quando o semáforo fecha, é essa imagem que se impõe: a infância parada nos cruzamentos de um país indiferente.
A Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989), da qual provavelmente Angola é signatária, estabelece que "toda a criança tem direito a um padrão de vida adequado ao seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social" (Artigo 27.º). A Carta Africana sobre os Direitos e o Bem-Estar da Criança vai mais longe, ao exigir aos Estados a adopção de medidas para proteger as crianças contra o abandono e a exploração.
Recentemente, a Provedora de Justiça, Florbela Araújo, alertou, no município do Cazenga, para a necessidade de reforçar a actuação das instituições do Estado na salvaguarda das liberdades e direitos das crianças. Numa palestra com o tema "O provedor de Justiça na defesa dos direitos das crianças", advogou maior cooperação institucional e penas mais pesadas para os casos de violência doméstica e exploração infantil. Um apelo que não pode cair no esquecimento.
Não é a primeira vez que se denuncia o cenário. Aqui no Novo Jornal, numa crónica anterior que assinei, intitulada "Crianças em situação de risco", mencionava, por exemplo, que só no Cuanza-Sul, o INAC registou 52 casos de violência contra a criança num curto espaço de tempo. No Cuando Cubango, os números são ainda mais gritantes: mais de 80 casos de exploração infantil entre Janeiro e Junho de 2024. Estas crianças trabalham em roças, carregam bidões de água, partilham responsabilidades que a idade não permite e a lei não consente.
A tragédia é ainda mais profunda quando se olha para os casos de acusações de feitiçaria - uma chaga social que persiste em silêncio. Entre 2022 e o presente, 245 denúncias chegaram ao INAC, afectando 118 rapazes e 127 raparigas, só em Luanda. Crianças rejeitadas pelas próprias famílias, maltratadas, empurradas para a rua sob a suspeita de "práticas maléficas". Numa sociedade em que a superstição substitui, por vezes, a justiça, os menores são alvos fáceis da ignorância e do medo.
O abandono não é apenas familiar; é estrutural. O país carece de um plano mais estruturado de protecção social da infância. As instituições de acolhimento estão sobrelotadas, e muitas delas carecem de recursos humanos e materiais. A fuga à paternidade continua a ser um dos crimes mais comuns e menos penalizados, deixando mães e filhos num ciclo de pobreza e vulnerabilidade.
É urgente interpelar. Onde estão os que têm o poder de orçamentar, legislar, criar respostas reais para a infância em risco? Onde estão os empresários, aqueles que, em tempos de crise, podem canalizar fundos, criar projectos de responsabilidade social e abrir oportunidades para mães e jovens em situação de rua? Há países africanos que criaram mecanismos eficazes de reinserção social com parcerias entre o Estado e o sector privado. Angola tem meios e pode torná-los mais eficazes.
A solidariedade de ocasião, feita de gestos pontuais e caridade, não basta. Doa-se um pão, uma moeda, uma roupa usada. Mas a criança continua na rua, sem identidade, sem educação e sem futuro. E o futuro de um país que abandona as suas crianças é, inevitavelmente, um futuro comprometido. As ruas que hoje servem de berço à indigência infantil serão, amanhã, terreno fértil para o crime, a droga, a perpetuação da miséria.
Esta crónica é um apelo à responsabilidade colectiva. Não é normal ver crianças a mendigar nos cruzamentos e não sentir desconforto. Não é normal que tenhamos crianças que não conhecem o sistema de ensino, mas sabem exactamente a que horas os supermercados estão mais cheios - porque é nesses momentos que aumenta a esperança de conseguir pão.
No final de contas, aquilo que fazemos pelas crianças define quem somos como povo. Elas são o espelho do nosso presente, mas sobretudo a medida do nosso futuro. E não há desculpa possível para quem, podendo agir, escolhe ignorar.
*Mestre em Linguística pela Universidade Agostinho Neto
*Mestre em Linguística pela Universidade Agostinho Neto
A infância parada nos cruzamentos
Não há dia em que os condutores não se deparem com crianças desamparadas a pedir esmola nos semáforos - as mãos pequenas estendidas com urgência, os olhos já sem surpresa, os pés descalços sobre o alcatrão quente. Nos semáforos do Largo da Independência, do Zé Pirão ou do Largo do Kinaxixi e arredores, os "petizes da cidade" perderam o direito à escola e à segurança. Tornaram-se, silenciosamente, actores de um drama urbano que a sociedade decidiu ignorar.
