A MONUSCO é a mais extensa, bem equipada militarmente e cara missão da ONU em todo o mundo, contando com uma autorização especial para entrar em combate, ao lado das Forças Armadas congolesas (FARDC) contra os grupos guerrilheiros que actuam no país, e pode ter um papel relevante no apoio à força de interposição composta pelo Quénia, Burundi e Uganda ali colada pela Comunidade de Países do Leste africano (EAC, sigla em inglês).
Ao anunciar a sua participação neste esforço, a missão da ONU na RDC elogiou ainda o esforço do Presidente João Lourenço nesta frente regional e sub-regional para estabilizar o leste congolês, onde há cerca de um ano os guerrilheiros do Movimento 23 de Março (M23) avançam de aldeia em aldeia conquistando território face à ineficácia das FARDC ameaçando mesmo tomar de assalto Goma, a capital da província do Kivu Norte e a mais importante cidade de todo o leste do Congo-Kinshasa.
O M23 é apontado pelo Governo do Presidente congolês, Félix Tshisekedi, de estar a avançar com o apoio empenhado do Ruanda e do seu Presidente, Paul Kagame, o que está na génese de uma das mais perigosas situações no continente africano, face à possibilidade de um confronto aberto entre o Ruanda e a RDC, o que teria potencialmente um efeito desestabilizador muito para além das suas fronteiras, considerando que entre os vizinhos mais próximos estão os já de si instáveis Sudão do Sul, República Centro-Africana ou ainda Uganda e Burundi...
Com este gesto, do ministério dos Negócios Estrangeiros da RDC, que dá carta verde à MONUSCO para integrar a força de estabilização da região, as suas unidades de combate poderão agora confrontar os rebeldes, o que é uma oportunidade da ONU reverter a muito má imagem que ganhou no país, sob acusações persistentes de inépcia no seguimento dos seus objectivos de manter os rebeldes sob controlo, e depois de vários episódios onde os seus aquartelamentos foram mesmo invadidos por milhares de congoleses furiosos com a situação.
O comunicado seguinte da MONUSCO, citado pela Radio Okapi, a estação emissora que serve de antena à ONU no país, aproveita para saudar as partes empenhadas na procura da paz nos processos de Luanda, liderados pelo Presidente angolano, enquanto líder da Conferência Internacional para a Região dos Grandes Lagos (CIRGL) e o de Nairobi, chefiado pela EAC, sendo, em conjunto com o antigo Presidente queniano, Uhuru Kenyatta, mediadores indicados pela União Africana, apontando ainda os bons ofícios do Presidente do Burundi, Evariste Ndayishimiye, presidente rotativo da EAC.
Neste documento, a MONUSCO diz-se ainda disponível para manter contacto próximo com as partes envolvidas nos processos de Luanda e Nairobi e com a força regional de interposição enviada pelos países da EAC.
Negociações de Nairobi retomam sem M23
Entretanto, depois de se ter recusado a depor as armas como era exigido pelo acordo assinado em Luanda entre a RDC e o Ruanda, o M23 não foi convidado a estar em Nairobi na retoma do processo de negociações da capital queniana, o que não gera boas perspectivas para um desfecho pacífico para este conflito.
Embora, sublinhe-se, desde a tarde de sexta-feira, depois de o documento de Luanda exigir um cessar-fogo a partir das 18:00 desse dia, as acções militares do M23 praticamente foram suspensas, excepção feita a pequenas escaramuças localizadas.
Com a retoma das conversações de Nairobi, que foram interrompidas a 21 deste mês devido, também, a ausência de partes fundamentais, a esperança surge do facto de o Ruanda, a através do seu Presidente, Paul Kagame, já ter assumido que tem alguma capacidade de influência junto da liderança do Movimento 23 de Março, podendo esse facto permitir algum espaço de manobra negocial. O encontro de Nairobi continua e os resultados serão conhecidos nas próximas horas.
O cenário alargado
O problema em pano de fundo é que o Governo do Presidente Tshisekedi acredita que este grupo, o M23, que foi criado em 2012 e esteve adormecido até meados de 2021, está a actuar com a cobertura ruandesa e acusa o Governo de Paul Kagame de lhes dar apoio logístico e permitir o uso do seu território para refúgio.
Há meses que que os dois países trocam severas acusações de trespasse das linhas de fronteira, gerando ocasionais escaramuças entre os dois exércitos, mas é na actuação do M23 que o problema se agudiza, com Kinshasa a acusar Kigali de estar por detrás do renascimento deste grupo terrorista para gerar instabilidade no leste da RDC.
Este conflito, que, segundo relatos das agências e dos media com jornalistas no terreno, já provocou centenas de mortos e largos milhares de deslocados, está a colocar em risco a soberania congolesa no Kivu Norte e a capital desta importante província congolesa, devido a sua riqueza em recursos naturais, Goma, pode mesmo ser tomada pelas forças do M23 em pouco tempo.
Para evitar uma guerra aberta entre a RDC e o Ruanda, e num contexto em que a sociedade civil congolesa está mergulhada em apelos radicais de acção militar contra o Ruanda, através de manifestações que envolvem centenas de milhares de jovens em várias cidades e regiões, visto como a força de onde saiu o M23 para mergulhar o leste do país no caos, a organização sub-regional, EAC, criou uma força militar de interposição.
Para já, esta força militar, com enquadramento legal para apoiar as Forças Armadas da RDC (FARDC) nas suas acções de combate ao M23, é composta por militares do Burundi, do Quénia e do Uganda, devendo contar com mais de 2.500 elementos nos próximos dias, havendo possibilidade de alargar este contingente a outros países.
E no campo diplomático, estão no terreno dois mediadores reconhecidos pela União Africana, o antigo Presidente do Quénia, Uhuru Kenyatta, em nome da EAC, e o Presidente angolano, João Lourenço, como líder da CIRGL e ainda na condição de Campeão para a Reconciliação e Paz em África.
Para que o documento assinado na Cimeira de Luanda tenha sucesso, foi importante, segundo alguns analistas, a admissão por parte do Presidente ruandês, mesmo que tenha primado pela ausência desta vez, de que irá exercer a sua influência junto do M23 para acabar com a sua acção violenta no Kivu Norte.
A questão em cima da mesa a responder é, primeiro, o que opõe de facto os dois países, e como ultrapassar os diferendos, porque, para lá da deposição das armas e da saída das zonas ocupadas, há em pano de fundo outras questões para ultrapassar
A primeira parte da questão é simples: a RDC acusa o Ruanda de apoiar o M23 na sua tarefa de desestabilizar o leste do país; e o Ruanda acusa a RDC de apoiar os guerrilheiros da Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR) nas suas acções em território ruandês, como Kigali diz acontecer amiúde, sendo ainda conhecido que o M23 acusa KInshasa de estar a desrespeitar o acordo assinado em 2013, que garantia a integração social dos elementos do grupo que depusessem as armas.
2ª parte da questão: Responder às razões de fundo para este conflito
O leste do Congo é uma das regiões mais ricas do mundo em recursos naturais estratégicos, desde logo o coltão e o cobalto, dois minerais incontornáveis para as novas industrias tecnológicas e aeronáutica de ponta, sem as quais toda a parafernália tecnológica de comunicações, como os simples smartphones, não existiria tal como a conhecemos, sem o coltão, e a indústria que exige a aplicação de baterias, como a dos automóveis eléctricos, seria algo muito distinto do que é hoje sem acesso ao cobalto, sendo ainda abundantes as denominadas terras raras, com igual uso nas novas tecnologias, o ouro ou os diamantes.
E a piorar o cenário, como combustível para esta fogueira, a RDC possui as maiores reservas do mundo de coltão e cobalto, mais de 80% de um e de outro, quase em exclusivo presentes no leste do país, sendo esta geografia geradora de grandes "apetites" pelas multinacionais do sector, que, segundo ONG"s internacionais de defesa dos Direitos Humanos, usam as guerrilhas para explorar sem controlo estas jazidas, afastar populações ou aterrorizar as forças do Estado que procuram chegar a estas "terras de ninguém" assoladas pela mais hedionda violência.
Mas também os vizinhos, como o Ruanda, desde sempre exploram estas riquezas de forma encapotada, porque, como chegou a ser denunciado publicamente por organizações internacionais, não existem depósitos de coltão no país mas este aparece como um dos grandes exportadores mundiais deste minério estratégico.
A par da questão dos recursos naturais congoleses nos Kivu Norte e Sul, existem ainda questões de natureza territorial com potencial incendiário na região, desde logo por razões étnicas, ou de sobrepopulação, sendo o Ruanda o que apresenta a maior densidade populacional na África continental, sendo apenas ultrapassado pelas Maurícias e Mayotte, pequenas ilhas francesas situadas entre Madagáscar e Moçambique, no Índico.
Este cenário conduz, desde logo, a uma situação em que o Ruanda, um país pequeno, sobrepovoado - mais de 400 pessoas por km2 -, mas um dos mais ricos e desenvolvidos em África do ponto de vista organizacional e económico, se vê fortemente tentado, segundo alguns analistas, a alargar a sua territorialidade para oeste, onde o leste congolês é hoje uma espécie de terra de ninguém, com fraca presença do Estado e dominado por guerrilhas e interesses obscuros ligados às suas riquezas naturais.
É de ter ainda em consideração que o Ruanda foi palco, em 1994, de um trágico episódio, conhecido como o genocídio ruandês, em que mais de 800 mil tutsis, a minoria étnica, foram massacrados com extrema violência, pela maioria Huto.
Este episódio histórico trágico levou a que largas centenas de milhares de ruandeses procurassem segurança na vizinha RDC, onde surgiram, nesse momento, algumas das guerrilhas mais activas, como a Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR) que vingou até hoje no leste congolês, sendo, juntamente com a ADF ugandesa, de génese islâmica, actualmente sob domínio do estado islâmico, e o M23, as mais sanguinárias.
Ver links em baixo nesta página para revisitar a cobertura do Novo Jornal à persistente crise no leste da RDC