Depois de receber em Kiev o Secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, o Presidente Volodymyr Zelensky tirou mais um coelho da cartola num truque de "magia" político-diplomática que baralhou os analistas e deixou, para já, em silêncio Moscovo, ao propor que delegações dos dois países em conflito vão para as portas do complexo metalúrgico Azovstal negociar uma solução para os milhares de soldados ucranianos e civis que ainda permanecem entrincheirados neste último reduto da resistência ucraniana na estratégica cidade de Mariupol, na costa sudeste do Mar de Azov.

Apesar de se tratar claramente de uma proposta estranha, denominada de "especial" por Kiev, desde logo porque levar delegações de alto nível de Kiev e de Moscovo para as imediações da Azovstal, onde se prolonga uma das mais intensas batalhas desta guerra na Ucrânia, que começou a 24 de Fevereiro com a invasão russa do país vizinho, constituiria um episódio raro na história das negociações para travar conflitos em séculos, sendo que as forças russas têm estes, perto, crê-se, de 2 mil militares do que resta do Batalhão Azov, de provada génese neo-fascista, totalmente cercados e sem possibilidade de criar dificuldades de monta na sua progressão em combate nesta parte do sudeste ucraniano.

Além do mais, embora apenas avançado por fontes russas, sem confirmação independente, juntamente com os militares do Batalhão Azov, estarão largas centenas de combatentes estrangeiros, nomeadamente norte-americanos, britânicos (pelo menos dois renderam-se e publicaram vídeos a pedir que sejam negociados por troca com russos presos pelos ucranianos) e franceses, voluntários ou mercenários, e ainda oficiais com ligações à NATO que davam instrução ou aconselhamento a esta unidade especial das Forças Armadas da Ucrânia.

Esta situação na Azovstal, em Mariupol, está a gerar problemas aparentemente mais sérios que apenas os resultantes do conflito militar directo, porque, nas últimas semanas, Kiev procurou resgatar pelo menos duas a três dezenas de indivíduos entrincheirados na unidade metalo-mecânica junto ao porto marítimo de Mariupol através do envio de helicópteros em modo de operação especial que acabaram abatidos pelas forças russas.

Isto, quando são cada vez mais ruidosas as informações que apontam para que entre os entrincheirados na Azovstal possam estar indivíduos com ligações comprometedoras à Aliança Atlântica, o que poderia gerar um problema diplomático sério e perigoso.

O melindre de uma situação como esta resultaria da constatação de que a NATO já está em confronto directo com a Rússia, o que tanto o Presidente norte-americano, Joe Biden, como o secretário-geral da NATO, Jens Stotelberg, têm insistido com particular ênfase que é preciso evitar a todo o custo um confronto directo entre forças russas e desta organização militar ocidental, porque, a suceder, levaria, tal como o Presidente russo, Vladimir Putin, também alertou, a um quase inevitável confronto nuclear devastador.

Para já, o que se sabe é que Putin, numa conversa televisionada com o seu ministro da Defesa, Sergei Shoigu, lhe ordenou que os militares do Batalhão Azov entrincheirados na Azovstal, fossem mantidos cercados de forma a que "nem uma mosca passe dali para fora".

Ou seja, o Kremlin ainda não respondeu a esta proposta, ou mais um coelho tirado da cartola de Kiev para encetar nova ronda de negociações junto à Azovstal.

Mas sabe-se que menos de 48 horas antes de ser feita, o mesmo Volodymyr Zelensky tinha ameaçado abandonar definitivamente todas as negociações com os russos devido ao problema do cerco que estão a fazer aos militares do Batalhão Azov em Mariupol.

Entretanto, depois de ter recebido, no Domingo, em Kiev, os norte-americanos Secretários de Estado, Antony Blinken, e da Defesa, Lloyd Austin, que reafirmaram o decisivo apoio político e militar à Ucrânia, Zelensky voltou a apostar forte num discurso desafiante para a Rússia, sublinhando que se receber todas as armas que pediu aos países ocidentais, vai dar resposta no campo de batalha à invasão russa, prometendo uma vitória militar.

A vida difícil de Guterres

Com esta demonstração de aposta clara na continuidade do conflito por parte dos governantes norte-americanos, que é fortemente secundada pelos líderes europeus e também "falcões", a presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula Leyen, o responsável pela diplomacia, o espanhol Josep Borrel, e o Presidente do Conselho Europeu, o belga Charles Michel, a tarefa do Secretário-Geral da NATO, António Guterres, que inicia hoje um dos mais decisivos dos seus périplos deste que ocupa o cargo, parece tudo menos facilitada.

O português António Guterres, que assume a liderança do bando de pombas" que voam pela paz, aterra em Ancara para um encontro com o Presidente turco Recep Erdogan, que se tem empenhado pessoalmente na mediação entre a Rússia e a Ucrânia, tendo como pano de fundo um cenário pouco animador, com os lideres dos EUA, Joe Biden, e do Reino Unido, Boris Johnson, bem como os europeus, Ursula Leyen, Borrel e Charles Michel, a defenderem que a saída do conflito passa por uma vitória da Ucrânia sobre a Rússia.

Esta sua iniciativa, que muitos estão a criticar, desde logo antigos dirigentes das Nações Unidas, que o fizeram em carta aberta, porque surge tardiamente, não começou bem logo com a reacção do Presidente da Ucrânia, que disse ser uma decisão errada e sem sentido Guterres ir primeiro a Moscovo e só depois a Kiev, embora o Secretário-Geral da ONU tenha feito saber que estava ciente do risco de ser "preso por ter cão e preso por não ter cão".

A verdade é que alguns analistas estão a interpretar esta atitude de Zelensky como um acto de pressão e de desaprovação face à decisão de Guterres de ir a Moscovo.

Mas esta ronda negocial de António Guterres surge logo após a deslocação a Kiev de Blinken e Lloyd Austin, dois acérrimos defensores do prolongamento da guerra, que voltaram a fazer promessas de entregas recorde de armas à Ucrânia, sendo, igualmente, um forte sinal de comprometimento com Zelensky porque, alegadamente, o avião com os dois governantes norte-americanos voou directamente para a capital ucraniana e é a primeira de altos responsáveis políticos dos EUA desde o início do conflito que levavam no "porão" a resposta ao líder ucraniano para "mais armas, mais capacidade de ataque e mais sofisticação nesse armamento".

Durante o encontro com Zelensky, Blinken, citado pelas agências, quando já estava fora da Ucrânia, reafirmou o apoio incondicional de Washington a Kiev, sublinhando que era "o momento certo" para esta deslocação e para sublinhar o "extraordinário apoio" que os EUA estão a dar ao Governo ucraniano nesta guerra, tanto militar como através das pesadas sanções impostas à Rússia.

Antony Blinken enfatizou o agradecimento que Zelensky endereçou ao Presidente Biden e o "povo americano pela sua extraordinária generosidade e apoio à Ucrânia".

Estas declarações foram feitas pelo Secretário de Estado norte-americano já na Polónia, onde deu a entender que os EUA esperam uma vitória militar ucraniana, sublinhando o seu "sucesso" na frente de combate, "resistindo fortemente com o firme apoio de metade do mundo coordenado pelos Estados Unidos" e pela "massiva pressão" colocada sobre Moscovo.

Os dirigentes ucranianos, entretanto, na forma de fugas de informação bem preparadas pelos especialistas de comunicação ao serviço de Kiev, que algumas investigações jornalísticas apontam para que sejam mais de 150 agências, algumas com longo histórico de relacionamento com a NATO e com os EUA e Reino Unido na área da Defesa, estão a avançar que esta conflito poderá ter mais duas a três semanas de duração, indo terminar com negociações propostas pela Rússia depois de anunciar uma vitória localizada no Donbass, depois de alcançar a conquista dos territórios integrais da repúblicas independentistas de Donetsk e Lugansk.

Isto, apesar de o Kremlin estar desde o início da guerra a insistir que os seus principais objectivos era a desmilitarização e a garantia de que a Ucrânia não entraria na NATO, o que está conseguido, segundo especialistas como o major-general e vice-presidente do EuroDefence Portugal, Agostinho Costa, e ainda a garantia de apoio à independência das auto-proclamadas repúblicas do Donbass, que só Moscovo reconhece, e que agora o Governo de Kiev vem admitir como podendo suceder em curto espaço de tempo.

Mas, ao mesmo tempo, devido ao fortíssimo impacto desta guerra na economia mundial, desde logo com os crescentes protestos na Europa devido ao aumento dos preços quase vertiginoso, alimentos e combustíveis, em especial, com a fome a alastrar entre os mais desfavorecidos da África e da Ásia e América Latina, com o FMI e o Banco Mundial a alertarem em relatórios sucessivos para uma desaceleração do crescimento da economia mundial, adivinha-se igualmente uma pressão maior dos que defendem que o conflito termine, apesar do esforço contrário em curso pelos EUA, Reino Unido e alguns dirigentes da União Europeia.

Esta deslocação de Guterres está a ser interpretada como um reforço do lado dos que querem dar uma oportunidade à paz.

Entretanto, na frente de combate...

... as forças russas continuam a reforçar a sua estrutura ao longo da extensa linha da frente, perto de 500 quilómetros, com os reforços vindos da região de Kiev, que ocuparam no início da guerra, e com reforços provenientes da Rússia, estando, segundo alguns analistas, mais de 150 mil homens fortemente apoiados por meios aéreos e terrestres.

Do outro lado, estão perto de 60 mil ucranianos, as melhor preparadas e melhor equipadas unidades de combate leais a Kiev, que estão a receber de forma quase ininterrupta, excepto quando os russos conseguem destruir os carregamentos oriundos do oeste da Ucrânia, que chegam ao país pelas fronteiras da Polónia e da Eslováquia, armamento, nomeadamente misseis Stinger e Javelin, Made in USA, mas também artilharia de diversos calibres.

Para já ainda não começou a ofensiva russa terrestre, estando as forças de Moscovo a apostar ainda e apenas nos disparos de artilharia e ataques com misseis de precisão nos objectivos militares ucranianos, visando especialmente as suas defesas anti-aéreas e os depósitos de armamento chegado dos países da NATO.

Os especialistas militares chamam a atenção para o facto de os ucranianos terem criado condições de defesa sólidas ao longo dos últimos anos, tratando-se como se trata de unidades de combate veteranas que estão a combater as milícias independentistas de Donetsk e Lugansk, nma guerra de baixa intensidade que já dura há oito anos e já fez mais de 14 mil mortos entre as populações locais maioritariamente russófilas.

O que quer dizer que a ofensiva terrestre russa só deverá começar quando as suas chefias militares entenderem que os bombardeamentos já danificaram estas defesas quanto baste para reduzir os riscos da infantaria que tem de avançar no terreno disputado palmo a palmo, como sucedeu na II Guerra Mundial, prevendo-se inúmeras baixas de um e do outro lado...

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional, criticando fortemente o avanço desta organização de defesa para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas der fora o sector energético, gás natural e petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 4 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.