... depois de deixar Moscovo, na terça-feira, o também líder rotativo da Comunidade Económica de Estados da África Ocidental (CEDEAO), onde esteve reunido com o Presidente russo Vladimir Putin, deslocou-se a Kiev para um tête-à-tête com Volodymyr Zelensky, onde transmitiu ao seu homólogo ucraniano o conteúdo da sua conversa com o "irmão" russo... o que se seguiu foi uma catadupa de ajustes diplomáticos com laivos de caos... mas pode ter sido aberta uma porta importante para que russos e ucranianos voltem a conversar sobre formas de reduzir o "calor" das armas no leste europeu.

Segundo contam os media russos, Úmaro Embaló terá ido longe demais na tarefa que lhe competia, porque o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov apressou-se a clarificar que Putin não encomendou a Embaló qualquer missão de levar uma mensagem a Zelensky, e se o fez, depois da conversa com o chefe do Kremlin, foi por sua livre iniciativa e responsabilidade, embora não fazendo qualquer, o que é relevante, qualquer crítica mais severa ao gesto do líder africano, o primeiro a encontrar-se com o Presidente ucraniano desde 24 de Fevereiro, data do início da invasão russa ao país vizinho.

O que Peskov admite é que Putin explicou a Embaló como é que e porque é que descarrilou o processo negocial entre Moscovo e Kiev logo nas primeiras semanas de guerra, com os ucranianos a abandonarem a mesa de negociações, segundo a versão russa, quando Moscovo estava, como está hoje, nota Peskov, pronto para negociações com a parte ucraniana, advertindo que tal obrigaria a uma mudança de postura de Kiev face ao essencial considerado assim pelo Kremlin.

Segundo o site da RT, Peskov disse, ao comentar a iniciativa do Presidente guineense, que "o colega do país africano disse que iria manter contacto com o Presidente ucraniano perante quem deixaria evidente a posição de Vladimir Putin sem haver qualquer mensagem específica envolvida".

E foi isso que fez o líder da CEDEAO e da Guiné-Bissau quando aterrou em Kiev na quarta-feira, tendo sublinhado, numa conferência de imprensa conjunta com Zelensky, o que fez e o seu homólogo ucraniano considerou, por seu lado, que as palavras do seu convidado foram "um sinal do lado russo" mas, o que pode ser visto como uma manobra de defesa, considerando que se trata de retórica porque Moscovo está ciente de que as condições para o diálogo é a saída das suas forças do território ucraniano.

Esta é uma charada protagonizada pelo irrequieto Úmaro Sissoco Embaló, que assim ganha protagonismo na cena internacional, sem resultados práticos, ou é uma iniciativa plena de oportunidade que pode ter desbloqueado o caminho para que agora novas iniciativas surjam visando a paz aproveitando a sua actuação como "lubrificante" diplomático de um mecanismo que estava emperrado por meses de insucessos negociais?

Ver-se-á nas próximas semanas, ou mesmo dias, porque o que é seguro é que o cansaço da guerra começa a ganhar dimensão de pedra no sapato dos países ocidentais, visivelmente saturados, pelo menos os seus povos, das consequências económicas dramáticas deste conflito, desde logo a histórica inflação e a queda de Governos uns atrás dos outros na Europa - Itália, Suécia... - e ainda o risco de nos EUA os Republicanos de Donald Trump, menos simpatizantes do apoio norte-americano à Ucrânia, poderem recuperar, como o indicam as sondagens, as duas câmaras do Congresso, o Senado e Representantes, o que mudaria tudo também no campo de batalha.

Certo, certo é que se neste entretanto histórico surgirem avanços na mesa das negociações, por mais ténues que sejam, é o líder de um pequeno país lusófono da África Ocidental que ficará como o "desengordurante diplomático" de um dos mais gordurosos, difíceis e complexos processos de paz em muitas décadas na Europa.

Para já, mesmo que só tenha sido dado um passo neste moroso e complexo processo, Sissoco Embaló, também com o peso institucional da CEDEAO por detrás, viu sair da boca de Zelensky a primeira indicação de que os seus esforços não passam desapercebidos, porque o líder ucraniano elogiou-o com um forte sublinhado em público, o que permite perceber um, mesmo que táctico, baixar da guarda para ver o que o advir breve reserva a este conflito entre a Ucrânia e a Rússia.

Mesmo que a conhecida retórica anti-Rússia de Zelensky não tenha sido esquecida quando o Presidente ucraniano insistiu na ideia de que Moscovo tem de retirar de todos os territórios ocupados, sublinhando a catástrofe alimentar que a agressão russa provocou em todo o mundo, especialmente em África.

Sissoco Embaló deixou como desejo da CEDEAO, de África e do mundo que as duas partes retomem as conversações directas. E se tal vier a suceder, é o grande sucesso diplomático africano conseguido na cena internacional em muitos anos...

E mais importante é quando a discussão sobre uma escalada para um patamar nuclear ganha dia após dia mais espaço mediático em torno desta guerra, com uma subida generalizada de ameaças e receios de um armagedão atómico.

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.

O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.

A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas de fora o sector energético, do gás natural e em pate do petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 5,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.