Como já sucedeu em Bucha, quando os ucranianos conseguiram convencer o mundo de que os russos mataram e torturam dezenas de ucranianos durante o cerco a Kiev, logo no início da guerra, em finais de Fevereiro, cuja solidez das provas se vai esfumando a cada dia que passa, também agora em Izium, uma das cidades reconquistadas pelos ucranianos na sua mais recente e bem conseguida contra-ofensiva no leste do país, o Presidente Zelenski se apressou a falar, nos seus vídeos diários, sobre corpos encontrados com cordas à volta do pescoço e outras evidências de tortura.
Os media ocidentais rapidamente e sem contextualizar retomaram as acusações de Volodymyr Zelensky ou sequer reproduzir o Ministério da Defesa russo, que veio dizer de imediato, citado pelos media russos, que aqueles corpos são de vítimas do conflito, civis e militares, que as forças russas propuseram entregar aos ucranianos mas estes recusaram aceitá-los tendo sido obrigados a sepulta-los, embora com a identificação das pessoas nas cruzes a encimar as sepulturas, sempre que possível.
E a situação tornou-se de tal modo insustentável para a versão ucraniana de torturas em massa que a Reuters, a maior agência de notícias do mundo, e uma das que conta maior prestígio, veio anunciar - o que é uma coisa rara nesta agência - a retirada de uma notícia sobre esses indícios de tortura porque os seus jornalistas no terreno não confirmaram a existência de cordas à volta do pescoço de alguns dos corpos exumados.
O porta-voz do Kremlin, Dmytri Peskov reforçou a ideia de que se trata de uma invenção ucraniana para culpar a Rússia, contando com a colaboração dos media ocidentais para repetir o mesmo cenário de Bucha, difundindo uma mentira de forma programada e profissional, mas prometeu que Moscovo tudo fará para a desmontar.
A par deste episódio que vem deixar ainda mais claro que, tanto de um lado como do outro, a verdade é um elemento negligenciável quando se trata de obter ganhos de propaganda para os combates a decorrer, como foi, por exemplo, quando Moscovo, face ao avanço evidente das forças ucranianas sobre territórios estratégicos para todo Donbass, no leste ucraniano, veio dizer que não se tratava de uma perda forçada de território que já controlava há meses mas sim se uma manobra de reconcentração de forças e reagrupamento das unidades de combate para melhor voltar à ofensiva, quando, na verdade, as suas tropas saíram em debandada deixando toneladas de material militar para trás.
Mas a Rússia não só está a perder vastos territórios na região de Kharkiv, fundamentais para o controlo das posições de Moscovo nas repúblicas independentistas de Donetsk e Lugansk, no Donbass, como também está a ver a artilharia ucraniana a conseguir, cada vez com mais insistência, flagelar a cidade de Donetsk, diariamente, com lança-roquetes norte-americanos e franceses de longo alcance, graças ao reposicionamento destas unidades nas áreas agora reconquistadas, fazendo dezenas de vítimas civis na capital daquela república pró-russa, que Moscovo considera tratar-se de crimes de guerra porque estes disparos visam apenas zonas civis no centro da urbe.
Mudança de táctica à vista
A estratégia para esta guerra está a ser questionada com cada vez maior insistência no seio da sociedade militar e política russas, com os media estatais a fazerem eco das dúvidas sobre as opções do Kremlin - o que quer dizer que foram autorizadas a fazê-lo com a intenção de medir e testar o pulso à sociedade civil - , fazendo ouvir as vozes que querem ver Moscovo a subir um patamar nesta ofensiva, deixando de lado as limitações inerentes à "operação militar especial" definida por Vladimir Putin, empregando apenas tropas profissionais, sem recurso a reservistas, com um claro limitado leque de alvos militares, o que poderia, por exemplo, levar a Rússia a alvejar as infra-estruturas ferroviárias e rodoviárias, tornando-as inúteis, barragens, centrais eléctricas, ou mesmo avançar para bombardeamentos aéreos estratégicos com recurso aos bombardeiros pesados supersónicos como o TU-160 (Tupolev) etc, o que ainda não se viu, exceptuando casos pontuais, como a destruição de uma barragem na semana passada para impedir as tropas inimigas de atravessar o rio.
Mas em Moscovo não se equaciona recorrer a munições nucleares, como alguns analistas ocidentais têm admito que pode suceder face à evidentes perdas na frente das forças de combate russas, como, por exemplo, as ogivas nucleares tácticas, de "pequeno" alcance, cujo efeito é sentido apenas numa área limitada, e que foram desenhadas para conter súbitos avanços do inimigo com ameaça de destruição da capacidade de combate, sendo parte dos arsenais tanto da Federação Russa como dos EUA.
Também as armas de destruição alargada como as químicas ou biológicas não estão no leque das possibilidades, sendo mesmo, tal como o nuclear, um elemento claro das linhas vermelhas traçadas pelo Presidente norte-americano, Joe Biden, que voltou, numa entrevista recente à CBS, a advertir para os riscos de resposta devastadora a Moscovo se der esse passo nesta guerra, onde Washington e os seus aliados europeus são parte directamente interessada ao fornecerem o apoio vital e ilimitado de armamento e financeiro a Kiev com o objectivo admitido, como o disseram sem titubear o Secretário de Estado Antony Blinken, e o Secretário da Defesa, Lloyd Austin, de vergar a Rússia e enfraquecê-la até se tornar irrelevante no mundo.
Alias, um sinal de que ninguém sabe ao certo o que vai suceder nos próximos dias, e quando o Inverno já bate à porta do Hemisfério Norte, com as suas temperaturas, naquela parte da Europa, a chegarem aos 30º negativos facilmente, é que as chefias militares norte-americanas ordenaram a elevação do estado de prontidão das suas forças (NATO) no leste europeu, especialmente na Polónia - o maior apoiante de uma guerra directa da Aliança Atlântica com a Federação Russa -, por temerem uma reacção elevada em escala por parte de Moscovo face às dificuldades enxovalhantes para uma superpotência militar sentidas na frente de combate.
De Moscovo não tardou a resposta. Dmitry Peskov, o porta-voz do Kremlin respondeu a Joe Biden dizendo que Moscovo nem sequer percebe as palavras do Presidente norte-americano porque a sua doutrina nuclear russa está bem clara e escrita, acessível a todos os interessados, e limita o recurso ao arsenal nuclear - o maior do mundo, diga-se - quando estiver perante uma ameaça existencial à Federação Russa, o que, concluiu, não o caso do que se passa actualmente no conflito na Ucrânia.
Mas é igualmente verdade que Vladimir Putin também traçou linhas vermelhas aos norte-americanos e aos seus aliados europeus, especialmente ao Reino Unido, quando lhes disse que tudo mudaria de perspectiva se estes fornecerem misseis de longo alcance aos ucranianos, e lembrou, o que Biden concordou, que no dia em que as tropas da NATO e da Rússia se alvejarem directamente, pouco ou nada poderá impedir uma escalada para o nuclear e o fim mais que certo da Humanidade tal como a conhecemos.
Em boa verdade, embora não seja coisa para já, essa possibilidade cresce a cada dia que passa sem que se veja um fim para este conflito, muito por causa do massivo apoio ocidental/NATO à Ucrânia como meio de derrotar os russos, como, por exemplo, também já o disse a presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula Leyen, tendo mesmo garantido a semana passada que a União Europeia vai aumentar e não reduzir o apoio financeiro e militar (os países individualmente) a Kiev, bem como engrossar as sanções, as mais violentas de sempre aplicadas a um país, à Rússia, mesmo que isso vá aumentar de força trágica a galopante crise económica que assola a Europa ocidental, os EUA, com efeitos devastadores em quase todo o mundo.
E com perspectivas negativas para os próximos meses, porque as sanções e as represálias de Moscovo estão a reduzir o volume de gás natural e crude exportados pela Rússia, deixando a União Europeia à beira de uma crise energética sem precedentes, que pode ter consequências económicas e financeiras impossíveis de antecipar para já.
Pequim e Moscovo, a mesma luta?
Provavelmente, sim. Provavelmente, a China e a Rússia partilham um importante objectivo global, que é a redução da hegemonia norte-americana no mundo, estando a decorrer uma evidente aproximação estratégica entre o gigante asiático e o maior pais do mundo, que se estende pela EurÀsia, como ficou claro logo no início da guerra, quando chineses e indianos se dispuseram a comprar o crude e o carvão que a Europa sancionou, tendo mesmo inflamado a importância de organizações internacionais que procuram ganhar espaço vital num mundo norte-americano-eurocêntrico, como os BRICS, que agrega Brasil, África do Sul, China, Índia e Rússia, ou a SCO (Organização para a Cooperação de Xangai), que integra, além da Rússia e ds China, o Kazaquistão, o Tajiquistão e o Kirguistão.
Foi com base nesta organização que os Presidentes russo, Vladimir Putin, e o chinês, Xi JInping, se encontraram na semana passada, tendo ambos voltado a reforçar o empenho no reforço da cooperação entre as duas Nações, reforçando a frente antiocidental, embora sem assim se definirem, prometendo mutuamente aumentar a cooperação em todos os domínios, deixando claro que a China é cada vez menos equidistante deste conflito, embora sempre sem dar o passo que falta, que é declarar apoio a Moscovo, mantendo o pedido de que a guerra termine em negociações sérias e rápidas.
O recado claro de Ramaphosa
E se a questão da divisão do mundo entre os pró-ocidentais e os "outros", embora sejam muitos os tons de cinzento neste mapa-mundo da geopolítica a preto e branco, não é sempre clara entre uns e outros, ocorrendo mesmo avanços e recuos, como foi assim vista a declaração sobre a guerra no leste europeu pelo Presdente angolano na tomada de posse, defendendo - numa ligeira inflexão na posição de João Lourenço - que compete a Moscovo acabar com a guerra, o Presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, foi mais objectivo e disse que os EUA não podem dizer o que os sul-africanos devem ou não devem fazer no contexto da cooperação global.
Ramaphosa foi recebido na Casa Branca, na passada semana, tendo ouvido de Biden um pedido claro para que a África do Sul apoie o ocidente no processo de isolamento de Moscovo, condenando a invasão da Ucrânia pela Rússia. O Presidente norte-americano não obteve o que pretendia, porque o seu homólogo africano recusou-se a condenar Moscovo.
Pretória, recorde-se, absteve-se na moção, nas duas moções, de condenação da Rússia que foram à Assembleia Geral da ONU desde o início da guerra, deixando claro que os laços históricos deste país africano com Moscovo, especialmente no tempo do apartheid, onde a então União Soviética apoiava incondicionalmente a luta do ANC, são duros de roer por Washington.
Ao receber o Presidente sul-africano na Casa Branca, Biden deixa ainda mais em evidência que os EUA estão a fazer um esforço suplementar para agradar aos africanos, porque foi neste continente que se concentraram a maior pate dos votos contra ou abstenções na condenação da Rússia procurada pelos Estados Unidos, tendo, desde então, iniciado uma séria de iniciativas de charme nestas latitudes pouco sensíveis a tudo o que seja beliscar o seu antigo e preferido, embora com excepções, aliado, que são os russos.
Apesar de ter sido claro o interesse de Ramaphosa em sedimentar as relações de cooperação com os EUA, e ter demonstrado agrado pela aproximação de Biden, o líder sul-africano não podia ter sido, pelo que se constata a partir dos relatos dos media locais, mais claro o mostrar a Joe Biden que a linha vermelha é precisamente aquele que o inquilino da Casa Branca mais queria: a condenação de Moscovo pela África do Sul.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.
O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas de fora o sector energético, do gás natural e em pate do petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 5,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.