A expectativa era grande para o primeiro discurso do Presidente ucraniano no Conselho de Segurança da ONU, mas as suas palavas foram iguais às de sempre no tom e na agressividade contra o invasor russo e nada mudou no xadrez da guerra.
Volodymyr Zelensky manteve todo o arsenal verbal anti-russo depois de o alegado massacre de civis na pequena cidade de Bucha, a norte de Kiev, ter levado a um reforço generalizado das críticas a Moscovo e a União Europeia e os EUA a reforçarem as sanções à Rússia, ao mesmo tempo que eram feitas novas e acrescidas remessas de armamento para que a Ucrânia mantenha a resistência às forças russas que a 24 de Fevereiro invadiram o país.
Embora as autoridades russas neguem totalmente o envolvimento dos seus militares naquelas mortes que deixaram o mundo em polvorosa, na cidade de Bucha, uma localidade satélite da capital ucraniana que saltou para as manchetes dos media internacionais depois de um vídeo com dezenas de corpos espalhados ao longo de uma estrada, alguns com as mãos amarradas atrás das costas, ter sido divulgado dois dias depois da saída das forças russas, o tom e a retórica dos países ocidentais - só os países da União Europeia expulsaram mais de uma centena de diplomatas russos em 72 horas - contra Moscovo apenas cresceu com esta reunião do Conselho de Segurança da ONU.
O embaixador russo nas Nações Unidas, Vassily Nebenzia, voltou a negar que tenham sido militares russos a matar aquelas pessoas, reafirmando que até à saída das forças russas de Bucha não existiam corpos nas ruas, falando em declarações do autarca local nesse sentido, em vídeos feitos logo após a saída das colunas de Moscovo, e que a "farsa" foi montada após a retirada dos militares que ocuparam a localidade por quase 40 dias.
Mas o diplomata russo foi mais longe e, na sua intervenção, que teve lugar já depois do Presidente ucraniano ter feito o seu discurso aos membros do Conselho, por videoconferência, dirigindo-se a Volodymyr Zelensky disse que o ocidente, União Europeia e Estados Unidos da América, "não estão preocupados com a Ucrânia e com os ucranianos, apenas usam o país e o seu povo para prejudicar a Rússia".
A acrescentou: "E vão fazer tudo para prolongar esta guerra porque é dessa forma que melhor atacam a Rússia, nem que seja até ao último soldado ucraniano. E - dirigindo-se a Zelensky - o senhor sabe o que se passa na frente de combate!".
Com estas palavras o embaixador Vassily Nebenzia, embora não tenha pormenorizado, estaria a querer dizer que os países ocidentais estão a fornecer armas à Ucrânia para manter a resistência aos russos, que invadiram o país a 24 de Fevereiro, para justificar mais sanções, de forma a destruir a economia russa, e não para mostrar quaisquer preocupações com a Ucrânia e com o seu povo.
O entendimento do Presidente ucraniano nem de perto nem de longe é este. Volodymyr Zelensky, pelo contrário, disse ao Conselho de Segurança ser fundamental aumentar as sanções contra a Rússia, apontando o sector da energia, de forma a que os países europeus, ao comprar o gás e o petróleo a Moscovo, não estejam a financiar a guerra contra o seu país.
E pediu mesmo uma mudança radical no formato do Conselho de Segurança, de onde quer que seja expulsa a Rússia, para que, com o seu direito de veto, não possa "continuar a vetar a liberdade" em países como a Ucrânia.
Já à margem deste Conselho de Segurança, onde, ao contrário do que tinha afirmado, a Rússia não mostrou evidências da "farsa" das forças de segurança ucranianas, apenas manteve a retórica de negação da responsabilidade e a firmeza da afirmação de que nenhum civil foi maltratado por militares russos em Bucha, o ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, veio acusar Kiev de estar a "querer estilhaçar as negociações de paz" que decorrem entre as delegações dos dois países, através de uma "provocação na forma de farsa".
Lavrov avisou que as forças russas não vão sair da Ucrânia sem terem alcançado os seus objectivos e que se a intenção de Zelensky é "dinamitar as conversações", do lado russo nada vai travar as suas operações militares.
Também à margem daquele Conselho de Segurança, noutra intervenção, o líder ucraniano avançou alguns degraus na retórica dirigida aos países europeus, avisando, em tom de ameaça, que se os lideres europeus continuarem a pagar o gás e o crude russos, através de bancos russos, financiando a guerra da Rússia, "então o futuro político desses líderes europeus não se vai desenvolver de forma normal", embora não tenha explicado em como é que surgirá a anormalidade.
E o que diz a China?
O Conselho de Segurança (CS) é composto por 14 membros, sendo que, destes, apenas cinco são membros permanentes e com poder de veto sobre todas as decisões ali aprovadas na forma de resolução, e, sobre este último, que teve lugar na terça-feira, a posição dos Estados Unidos, da França, do Reino Unido e da Rússia, já era conhecida, os quatro primeiro totalmente contra a Rússia, faltando saber o que tinha a dizer a China, o 5º membro permanente.
E isso ficou claro quando o embaixador chinês no CS, Zhang Jun, disse, na terça-feira, admitindo que as imagens de Bucha são perturbadoras, que nenhuma acusação "pode ser feita sem ser baseada em evidências claras".
Para Zhang Jun, não é possível fazer acusações desta gravidade sem ter a certeza de que estas são produzidas "a partir de factos", com " circunstâncias relevantes e as causas específicas verificadas e estabelecidas" porque "até que todo o contexto fique claro, todas as partes devem agir com moderação e evitar acusações infundadas".
"As questões humanitárias não devem ser politizadas. As necessidades humanitárias da Ucrânia e países vizinhos são enormes", sublinhou, acrescentando que "a China apoia todas as iniciativas e medidas destinadas a aliviar a crise humanitária".
O diplomata chinês, citado pela Lusa, pediu aos Estados Unidos, à NATO e à UE a "entrarem em diálogos abrangentes" com a Rússia para "enfrentar os diferendos acumulados ao longo dos anos".
Zhang Jun também sublinhou que "os países em desenvolvimento não são partes do conflito", e, portanto, "não devem (...) arcar com as consequências dos conflitos geopolíticos e da competição entre grandes potências".
Imagens falsas?
Face às alegações dos media e das autoridades russas sobre a falsidade das imagens de Bucha, que estão, de forma inequívoca, a alterar todo o contexto deste conflito no leste europeus, pelo menos dois dos momentos captados em víde apontados como elementos de prova de que se tratou de uma farsa,o foram já alegadamente desmontados através de técnicas laboratoriais de imagem.
O canal estatal francês, a France 24, disse ter provado que o alegado "morto" a levantar-se do chão filmado através do retrovisor de um dos veículos ucranianos é, na verdade, um efeito de distorção gerado pelo espelho da viatura, enquanto o alegado braço do corpo na estrada que parece mover-se, não é mais, ainda segundo o canal francês, que um objecto com semelhanças com uma braçadeira branca a percorrer o corpo criando outra ilusão de óptica.
Também o The New York Times, com imagens captadas por satélite, veio mostrar que os corpos que as autoridades russas dizem ter sido "plantados" pelos ucranianos após a sua saída de Bucha, já ali estavam há semanas. Mesmo que estas imagens não provem que aquelas pessoas foram mortas por militares russos, pelo menos diluem a solidez da narrativa russa de que não existiam quando deixaram a cidade. A não ser que, como alega Moscovo, também se trate de uma montagem...
Todavia, o embaixador russo na ONU não se referiu explicitamente a estas como as imagens que iria apresentar como prova de que não foram militares russos a perpetrar aquelas atrocidades, que a comunidade internacional não tem dúvidas de que se trata de crimes de guerra e contra a humanidade, embora tanto os EUA como as grandes potências europeias se tenham recusado a alinhar na tese de Kiev, lançada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Dmitri Kuleba, de que se trata de um genocídio, tese que foi repetida depois por Volodymyr Zelensky.
O representante da Rússia nas Nações Unidas, Vassily Nebenzia, disse, isso sim, que "nenhum cidadão civil sofreu às mãos das tropas russas" e no Conselho de Segurança da terça-feira, disse que as imagens usadas pelo The New York Times para desmentir os russos, são "obviamente falsas" e fabricadas para esse efeito.
Os analistas admitem que, depois, das acusações de genocídio e as declarações do Presidente ucraniano no Conselho de Segurança das Nações Unidas, será quase impossível um encontro entre os Presidentes russo e ucraniano, o que deixa antever que a paz só será conseguida após uma vitória esmagadora de uma das partes ou a constatação de facto de uma situação férrea de impasse militar.
E a guerra prossegue
Entretanto, no terreno, a guerra soma e segue, com as forças ucranianas que retiraram do norte, das imediações de Kiev, a dirigirem-se para leste, onde os analistas, e as autoridades militares russas também o anunciaram, vai ter lugar a frente de batalha decisiva.
Isto, porque Moscovo já determinou que vai concentrar o seu poder de fogo na libertação total das repúblicas do Donbass, a de Donetsk e a de Lugansk, onde, como é afirmado pelos analistas militares, a Ucrânia tem o grosso das suas forças de maior capacidade combativa, desde 2014, quando os nacionalistas anunciaram a sua intenção independentista desta área geográfica do leste ucraniano pró-russo, e ainda próxima da Crimeia, que, após referendo, Moscovo anexou também em 2014.
Perto de 60 mil homens, os melhor preparados e equipados, da Ucrânia, deverão enfrentar as forças russas reagrupadas, que visam uma rápida vitória militar, aproveitando a dificuldade de reabastecimento dos ucranianos, de forma a que as comemorações do 09 de Maio, o dia da libertação e da vitória soviética sobre os nazis de Hitler, em 1945, decorram sem a sombra de uma possível derrota histórica da Rússia na Ucrânia.
Esta vitória-relâmpago é ainda fundamental para que a Rússia possa dar por completa a sua tomada da costa do Mar de Azov, sendo que ainda falta terminar a operação de tomada da cidade estratégica de Mariupol, onde decorrem os piores combates desta guerra que já vai em 40 dias.
Nos países vizinhos, apesar de em muito menor número, continuam a fluir milhares de refugiados para os países vizinhos, como a Polónia e a Hungria...
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro, depois de semanas de impaciente expectativa, as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional, criticando fortemente o avanço desta organização de defesa para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de KIev da soberania russa da Península da Crimeia, integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1992, com o colapso da União Soviética.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios...
Milhares de mortos e feridos e mais de 4 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.