Em alguns artigos de opinião ou nas redes sociais, de forma tímida, tem-se assistido a críticas pela forma como os países europeus tratam os refugiados que ali chegam de países em guerra de África e do Médio Oriente/Ásia, com as imagens degradantes divulgadas globalmente, em comparação com o massivo apoio aos refugiados que fogem da guerra na Ucrânia, mas só agora uma autoridade global, o etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus, director-geral da OMS, veio a público chamar a atenção para essa realidade: "A raça humana não é tratada por igual neste mundo", lamentou.

Isto, no mesmo dia, em que o Secretário-Geral das Nações Unidas, o português António Guterres, veio a público lamentar que não existam actualmente condições mínimas para se admitir que um cessar-fogo possa ser conseguido no conflito na Ucrânia, que começou a 24 de Fevereiro, com o avanço das forças russas sobre o país vizinho.

Estes lamentos de Guterres e Ghebreyesus surgem numa altura em que o conflito no leste europeu soma e segue no número de vítimas que prova há 50 dias, com mais de 4 milhões de pessoas, na maioria mulheres e crianças, procuram segurança longe das suas casas, nos países vizinhos, como a Hungria, a Polónia ou a Roménia, onde toda a Europa se movimenta para os receber e conduzir a centros de acolhimento desde a ponta oeste, Portugal, ao extremo norte, na Noruega.

O quer Tedros Adhanom Ghebreyesus pretendeu dizer ao chamar a atenção pela forma como a Europa, onde estão milhões de refugiados, e os EUA, que já prometeram abrir a porta a mais de 150 mil refugiados ucranianos, é que ao longo dos últimos anos, também milhares de africanos e asiáticos fugiram de países em guerra, do Afeganistão, na Ásia, ao Iémen, no Médio Oriente, ao Mali ou Níger, entre ouros, no continente africano, obtendo na Europa um acolhimento totalmente diferente, morrendo mesmo aos milhares na travessia do Mediterrâneo, em frágeis embarcações, e, quando chegam, são colocados em campos de refugiados sem condições.

"O mundo não olha para a raça humana de forma igual", disse o DG da OMS, adiantando ser "muito difícil de aceitar" mas frisando que "essa é a realidade", em conferência de imprensa, no final de quarta-feira.

Tedros Adhanom Ghebreyesus acrescentou, numa referência/glosada à frase no histórico livro de George Orwell, "O Triunfo dos Porcos -Animal Farm", uma das obras literárias de mais forte crítica ao modelo soviético, que a comunidade internacional não dedica o mesmo cuidado a brancos e a negros, vendo "uns mais de forma mais igual que outros". A frase de Orwell é: "Todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais que outros".

Sem retirar importância à ajuda prestada aos refugiados ucranianos, Ghebreyesus lamenta que a mesma atenção não seja prestada ao Tigray, Etiópia, à Síria, ao Iémen, Afeganistão... numa das mais vincadas críticas à comunidade internacional pela forma como utiliza critérios diferentes para lidar com situações de grande fragilidade humana em função das origens geográficas e cor da pele.

E o problema na Ucrânia tende a manter-se como uma fornalha a produzir tragédia humana, como o admite o Secretário-Geral da ONU, que disse nas últimas horas que não vê condições se conseguir um cessar-fogo global na Ucrânia.

No entanto, António Guterres fez questão de dizer, na quarta-feira, que, mesmo sem cessar-fogo, é possível fazer muito mais para salvar vidas humanas no conflito na Ucrânia, através da abertura de corredores humanitários.

Para já, informou Guterres, a ONU fez propostas a Moscovo e a Kiev para que sejam acordados de forma sólida paragens nos combates limitados para permitir a saída de pessoas das cidades, estado a aguardar respostas.

Isto é de grande importância porque o Presidente norte-americano, Joe Biden, admitiu esta quarta-feira que, no seu entender, a Rússia está a conduzir um genocídio na Ucrânia, o que cria terreno ideal para justificar o crescente apoio militar a Kiev, desta vez mais 750 milhões USD em material bélico ofensivo, mas, mais importante, abre caminho para justificar a legalidade, de acordo com a lei internacional, de uma intervenção directa de forças da NATO no conflito.

Se isso vier a suceder, apesar de Biden já ter obtido o apoio nesse sentido do Canadá, e tacitamente, do Reino Unido, países da NATO sem continuidade territorial com a frente de batalha, logo menos expostos às consequências desse envolvimento, os restantes países europeus, como a Alemanha, a França e a Itália, mostram-se mais reticentes a aceitar que se trata de um genocídio.

Até porque um confronto directo entre a Rússia e a NATO, tanto Moscovo como Washington já disseram sem deixar dúvidas, levaria rapidamente à III Guerra Mundial e a uma guerra nuclear de escala global.

Moscovo também já respondeu a Joe Biden. Dmitri Peskov, o porta-voz do Kremlin, disse ser "inaceitável que um Presidente dos EUA fale desta forma", considerando que se trata de uma "aposta na desinformação" de um Chefe de Estado de um país que "cometeu tantos crimes nos tempos recentes!",

"Categoricamente discordamos destas palavras irresponsáveis que distorcem de forma intencional a realidade", apontou Peskov.

Segundo a Convenção das Nações Unidas para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, de 1948, no seu Artº 2, este tipo de crime ocorre quando uma força ou país age com intencionalidade provada de querer "destruir em parte ou totalmente um grupo étnico, nacional, racial ou religioso...".

Este crime, como já disse a Amnistia Internacional, é dificilmente verificável na Ucrânia, embora os especialistas admitam que seja mais fácil provar a ocorrência de crimes de guerra ou crimes contra a humanidade, que, sendo graves, os especialistas, não comparam com o genocídio, que tem, na histórica, exemplos flagrantes disso, como a tentativa da Alemanha nazi, na II Guerra Mundial de aniquilar os judeus, ou em 1994, no Ruanda, quando a maioria Hutu exterminou mais de 800 mil Tutsis, numa busca selvática para erradica esta etnia na totalidade, como se veio a provar.

E os crimes de guerra e contra a humanidade foram provados em todas as grandes guerras do século XX, incluindo como os mais graves nas I e II GM, e já no XXI, desde o Vietname, a Coreia, o Iraque, Afeganistão, ou as guerras civis do Congo, o conflito em Angola, Moçambique... etc.

Entretanto, no terreno...

Quando as duas partes em conflito, que começou a 24 de Fevereiro, com a invasão russa, se preparam para uma fase decisiva, com a iminência de uma batalha de proporções históricas, no Donbass, onde uns e outros juntam as suas melhores e mais bem preparadas forças, Moscovo admite voltar a atacar a capital ucraniana, Kiev.

As Forças Armadas da Rússia ameaçaram atacar os centros de comando na capital ucraniana, poupados por Moscovo até ao momento, acusando a Ucrânia de disparos e de sabotagens em território russo.

"Estão a verificar-se tentativas de sabotagem e de ataques das forças ucranianas contra alvos em território da Federação da Rússia", declarou Igor Konachenkov, porta-voz do Ministério da Defesa russo, citado pela Lusa.

"Caso prossigam estas acções, o exército russo desencadeará ataques dirigidos a centros de tomada de decisão, incluindo em Kiev, o que o exército russo se absteve de fazer até agora", prosseguiu.

No final de março as forças russas retiraram-se da região de Kiev. Durante um mês, tentaram cercar a capital e efectuaram diversos bombardeamentos que atingiram a periferia da capital.

Moscovo possui designadamente mísseis hipersónicos, considerados impossíveis de destruir durante o voo devido à sua velocidade, que indicou já ter utilizado na Ucrânia.

O porta-voz do Ministério da Defesa também referiu que a zona comercial do porto de Mariupol, cidade estratégica do sudeste da Ucrânia, foi totalmente conquistada.

Na segunda-feira, o líder dos separatistas russófonos de Donetsk, que combatem ao lado do exército russo em Mariupol, tinha já reivindicado este avanço militar.

"O que resta das unidades ucranianas e dos nazis [do batalhão] Azov presentes na cidade estão bloqueados e privados da possibilidade de sair do cerco", afirmou hoje Igor Konachenkov.

O responsável militar afirmou ainda que Moscovo destruiu 36 alvos militares ucranianos durante ataques no decurso das últimas 24 horas.

Objectivo: 09 de Maio

No terreno, com a rendição do Batalhão Azov, pelo que se sabe, todos os membros que dele restavam, na cidade de Mariupol, e com deslocação das forças que estavam a cercar Kiev para a região leste, onde, acabaram por completar o cerco, segundo analistas militares, às cerca de 60 mil tropas ucranianas posicionadas entre o Rio Dniepre, que atravessa ao país, e o Donbass, a ofensiva russa parece estar agora a recuperar algum fulgor perdido, estando mesmo, segundo Zelensky, a ser preparada a mais pujante ofensiva de Moscovo nesta região.

Isso parece coincidir com as perspectivas de alguns analistas militares que apontam como objectivo imediato de Vladimir Putin conseguir uma vitória total ou parcial para poder vangloriar-se disso mesmo quando comemorar o Dia da Vitória, a 09 de Maio, em Moscovo, na tradicional gigantesca parada militar que celebra o triunfo soviético sobre a Alemanha nazi de Adolf Hitler, em 1945.

E para emoldurar esse momento, o Presidente russo disse, na terça-feira, esteve com o seu homólogo e aliado bielorusso, Alexander Lukashenko, no cosmódromo da Vostochny, onde adiantou, confrontado com as sanções a que a Rússia está a ser sujeita por parte dos países ocidentais, que Moscovo tem apenas "objectivos nobres" nesta operação militar na Ucrânia.

Sobre o conflito na Ucrânia, Putin sublinhou que tal confronto era uma inevitabilidade e "uma questão de tempo", face ao crescente pendor nazi-fascista da governação ucraniana.

O senhor do Kremlin apontou, numa breve conversa com jornalistas, já no cosmódromo de Vostochny, na região de Amur, situada no extremo leste russo, e um centro estratégico da indústria aeroespacial do país, onde Moscovo pretende concentrar a sua actividade do sector e diluir a dependência de Baykonur, no Cazaquistão, que esta guerra resultou de um longo processo de transformação da Ucrânia num "centro anti-Rússia" com base em ideologias nazis e fascistas plantadas estratégica e intencionalmente.

Citado pelos media russos a partir da TASS, Vladimir Putin acrescentou, nesta curta conversa, que se sabia há muito tempo que esta guerra iria ter lugar porque essa "base nazi e anti-russa não podia deixar-se em crescimento tão próximo da Rússia", sendo, por isso, "uma clara questão de quando e não se teria lugar".

E disse ainda que todos os "nobres e facilmente compreendidos" objectivos "vão ser alcançados" no fim da denominada operação militar especial, designação oficial da invasão da Ucrânia, que passa por garantir apoio total às repúblicas independentes do Donbass, Donetsk e Lugansk, garantindo ao mesmo tempo "a segurança da própria russa".

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional, criticando fortemente o avanço desta organização de defesa para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas der fora o sector energético, gás natural e petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 4 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.