Face a este cenário de clara perda na frente leste, na região de Kharkiv, onde as forças russas perderam na última semana mais território do que aquele que tinham conquistado desde Abril - 3.000 km2 -, incluindo a estratégica cidade de Izium, que dá acesso ao Donbass, o reduto que Moscovo considera já como parte da extensa Pátria russa, em cima da mesa, cada vez mais trepidante, de Vladimir Putin, estão agora duas possibilidade: ou declara guerra formalmente a Kiev, obliterando as limitações da sua "operação especial" e ordena a mobilização geral, ou cede, em negociações apressadas, quase tudo o que ganhou, para manter pouco mais que a Crimeia, saindo com os olhos em baixo para em casa, apesar de tudo, dizer que não ficou sem nada.
Uma das evidências de que as coisas estão a correr muito mal para Moscovo, pelo menos para já, é que, num dos principais espaços de debate da Russia Today, o principal canal de TV estatal russo para o exterior, o Cross Talk, os dois debatentes, na segunda-feira, insistiram fortemente na ideia de que o Kremlin está sem opções e só lhe resta uma declaração formal de guerra, colocando todo o poderio da Rússia, até aqui considerada um gigante militar, que, fora o seu arsenal nuclear, afinal pode ter pés de barro, na frente de combate, levando Moscovo a autorizar ataques directos com mísseis hipersónicos aos centros de decisão em Kiev e a todas as infra-estruturas de comunicação, rodoviária e ferroviária, no vasto território ucraniano, impedindo assim a chegada de material militar pesado do ocidente.
E já hoje, na Al Jazeera, um dos comentadores habituais russos desta guerra, Viktor Olevitch, do Centro para as Políticas Actuais, disse que de forma nenhuma a Rússia se pode permitir uma derrota militar neste conflito, porque isso teria um efeito catastrófico em toda a estrutura política do Federação, sublinhando a importância de manter em cima da mesa a perspectiva de que Moscovo defende desde o início da sua operação militar especial que a saída mais razoável para esta situação é a mesa das negociações.
No mesmo espaço noticioso, Mychailo Winnnckyj, especialista em relações internacionais da Universidade de Kiev, lembrou que o Presidente Volodymyr Zelensky não tem tido duas palavras neste capítulo, que é o facto de que as negociações só fazem sentido quando os russos deixaram de vez todo o território ucraniano, incluindo a Crimeia - Península anexada em 2014 após referendo - e o Donbass - onde estão as duas repúblicas autoproclamadas independentes de Donetsk e Lugansk -, salvaguardando que o objectivo de Kiev não é negociar mas sim vencer a guerra.
E, depois de Victor Olevitch ter lembrado que as negociações só podem ser impulsionadas pelo ocidente que deve parar de fornecer equipamento militar ilimitado aos ucranianos, Mychailo Winnnckyj lembrou, ironizando, que o principal fornecedor de equipamento militar aos ucranianos não é o ocidente mas sim a Federação Russa, porque só na última semana deixaram para trás, em debandada, mais artilharia e veículos de combate que aquilo que o ocidente (NATO) ofereceu a Kiev desde o início da guerra.
Também é possível perceber alguma pressão sentida pelo Kremlin com esta situação olhando para as declarações mais recentes do ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, que veio, nas últimas horas, recordar que as negociações nunca foram afastadas por Moscovo como melhor forma de resolver este problema.
"Nós não rejeitamos as negociações, não desistimos das negociações", sublinhou Lavrov, citado pelos media russos, acrescentando que "aqueles que rejeitam as negociações - Kiev - , têm de perceber que quanto mais demorar, mais difícil será chegar a um entendimento. Tal como tem dito o Presidente Putin".
Mas as coisas devem estar mesmo a correr mal para os russos, que, embora só deixem entender as sérias dificuldades pela análise e interpretação das suas frases, vão vendo aumentar as críticas internas, como foi o caso recente da "estrela" russa da frente de batalha, o Presidente da Chechénia, Ramzan Kadirov, liderando o seu exército de guerreiros islâmicos e barbudos, com os quais conseguiu alguns dos mais proeminentes avanços neste conflito.
Ramzan Kadyrov encostou os chefes militares do Kremlin à parede ao questionar a sua estratégia quando ordenaram a retirada das forças na região de Kharkiv, na frente de Izium, face à ofensiva ucraniana, exigindo mesmo analisar a situação olhos com olhos com o ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu.
Obrigado, disse Zelensky
Chegados ao marco simbólico dos 200 dias - no Domingo -, o Presidente ucraniano agradeceu este Domingo ao seu povo pela defesa do país e quando a invasão russa completou 200 dias, ainda sem perspectivas de uma solução negociada para o conflito.
"Nestes 200 dias conseguimos muito, mas o mais importante, o mais complicado, está para chegar", afirmou o dirigente ucraniano na sua mensagem diária ao país, citado pela Lusa.
Zelensky elogiou a acção do exército ucraniano, dos "combatentes que heroicamente contiveram o inimigo" e dedicou o discurso "a todos os que estiveram valentemente de pé durante 200 dias, sendo o motivo exacto para que a Ucrânia esteja de pé".
"Acreditamos em vós, aos que estão a fazer o seu trabalho, a arriscar a sua vida, defendendo o seu país durante todos estes 200 dias, a - 15 graus centígrados, a + 35 graus centígrados, às 02h00 ou às 06h00, numa qualquer segunda-feira ou no Dia da Independência, apesar do cansaço, da tensão e do perigo", assinalou.
Zelensky voltou a frisar que não vai permitir qualquer espaço para negociações com Moscovo antes de as tropas invasores terem deixado o país sem excepção, querendo dizer com isso que não haverá um fim para esta guerra antes de a bandeira ucraniana voltar a flutuar nos céus da Crimeia, que os russos anexaram em 2014, ou no Donbass, nas suas duas república independentes auto-proclamadas e reconhecidas apenas por Moscovo e os seus mais estreitos aliados, como a Síria, a Coreia do Note ou a Venezuela...
E, face a esta postura, mesmo depois de o Kremlin ter vindo, de novo, admitir disponibilidade para negociar com Kiev, o Presidente ucraniano agradeceu individualmente às tropas terrestres pela seu "valente e desinteressado trabalho", um trabalho "duro", à Força Aérea, que felicitou por "repelir com êxito o inimigo" na região de Donetsk, e às forças navais ao recordar os seus "êxitos".
Zelensky expressou ainda satisfação pelas suas tropas, as que "escrevem a história da independência, a história da vitória, a história da Ucrânia".
A Ucrânia reivindicou um dos seus principais êxitos desde o início da guerra, quando no sábado o Ministério da Defesa anunciou que as suas tropas estavam a registar importantes avanços na região de Kharkiv.
Kadyrov pronto a retomar as localidades perdidas em Kharkiv
O líder checheno Ramzan Kadyrov já veio, no entanto, e depois de criticar violentamente as chefias russas, pela sua retirada em Izium, garantir que está pronto para voltar a avançar com os seus guerreiros sobre a região perdida para a retomar para controlo russo.
Para isso, exige discutir a situação comos chefes mais estrelados em Moscovo, especialmente a táctica de saída já explicada pelo ministro da Defesa, Sergei Shoigu, como forma de reduzir as baixas e reorganizar as forças para depois retomar a ofensiva.
Kadyrov diz que está pronto a ir reconquistar todas as localidades perdidas nos últimos dias, o que é, segundo o Presidente Zelensky, o equivalente a mais de 2 mil quilómetros quadrados, sublinhando que já tem os seus homens no terreno, bastando dar a ordem para que tudo volte ao lugar, voltando a ameaçar que os russos vão tomar todo o território ucraniano na costa do Mar Negro, até à cidade de Odessa.
Mas o famoso comandante checheno tem uma exigência: quer ver mudanças claras na estratégia russa no terreno, garantindo que se tal não suceder, vai falar pessoalmente com a liderança do país - Vladimir Putin-, para explicar o que se está a passar.
"E eu diria que o que se está a passar é extraordinário, eu diria mesmo avassaladoramente estranho... muito, muito interessante", disse Kadyrov, deixando o ar a ideia de que algo de muito especial se está a passar no terreno, que está a fragilizar a posição russa, embora não tendo explicado, pelo menos no relato do que disse reproduzido pelo site da estatal Russia Today.
Mas, para já, facto é que Kiev conseguiu o seu maior feito nesta guerra com o avanço surpreendente em Kharkiv (Izium), deixando a Rússia não só fragilizada na sua imagem de potência militar global, como permite ao Presidente Zelensky mostrar resultados de todo o infindável equipamento militar do mais sofisticado que existe que os aliados ocidentais, EUA, Reino UNido e União Europeia, estão a enviar para a frente de batalha.
Esse apoio é de tal modo gigantesco que Moscovo já disse que está a um passo mínimo de se atravessar a barreira da perigosa "guerra travada por terceiros", os ucranianos a baterem-se em nome da NATO contra a Rússia, para uma situação catastrófica de confronto directo entre a Federação Russa e a Organização do Tratado do Atlântico Norte, criada em 1949 para suster o avanço soviético na Europa do pós-guerra, que tanto Putin como o Presidente norte-americano já admitiram que, se suceder, vai rapidamente evoluir para um armagedão nuclear.
Carne para canhão
O Presidente da Federação Russa, sobre este tema, aproveitou uma conferência sobre segurança em Moscovo para acusar os Estados Unidos de estarem a usar os ucranianos como "carne para canhão" de forma a prolongar o conflito na Ucrânia para desgastar a estrutura militar russa.
A guerra na Ucrânia, que já trespassou a barreira psicológica dos seis meses de duração, após a invasão pelas forças russas, a 24 de Fevereiro, está a entrar numa fase em que os objectivos militares que compreendam avanços e ganhos territoriais, de um e do outro lado, têm de suceder nas próximas duas a três semanas porque a aproximação do rigoroso inverno nesta parte do leste europeu torna impossível quaisquer manobras regulares.
Esse facto permite aos analistas militares colocar como mais forte hipótese a procura dos russos de consolidar posições no Donbass e no sul da Ucrânia, enquanto as forças de Kiev vão aproveitar este espaço de tempo para provocar danos na moral dos invasores.
E é neste cenário que o chefe do Kremlin, há cerca de duas semanas, aproveitando uma conferência sobre segurança que teve lugar em Moscovo, procurou aplicar um golpe psicológico nas forças ucranianas, afirmando que estas estão a ser usadas pelos Estados Unidos da América e pelos seus aliados europeus como "carne para canhão" de forma a prolongar o mais possível esta guerra com a qual Washington quer fragilizar o poderio militar de Moscovo.
Com estas palavras, Vladimir Putin estava a dizer aos combatentes ucranianos que não é pela defesa da democracia ou do país que estão a morrer na condição de "carne para canhão" mas sim porque isso interessa aos ocidentais como forma de enfraquecerem a Rússia através de uma guerra de desgaste o mais longa possível que alimenta através de uma máquina propagandística que visa "criar uma fobia aos russos e uma ideia anti-Rússia com base na enfatização de valores fermentados numa ideologia neo-nazi" que vê o povo do Donbass como "objecto natural de aniquilação", apostado no "fornecimento contínuo de armas pesadas aos ucranianos".
Estas palavras foram depois complementadas por uma declaração do ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, que retira a este conflito parte do risco que continha numa escalada catastrófica ao afirmar que Moscovo não prevê em nenhuma circunstância recorrer ao seu arsenal nuclear na Ucrânia, o que tem sido sub-repticiamente admitido pelo vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, Dmitri Medvedev, antigo Presidente russo, ao longo dos últimos meses, o que representa muito atendendo que se trata de um dos mais fieis colaboradores de Putin.
Mas Shoigu, citado pela Reuters e noticiado pelo The Guardian, fez uma acusação grave aos ocidentais que estão mais próximos de Kiev e mais alimentam o seu esforço de guerra, Washington e Londres, acusando-os de estarem a planear directamente as acções militares levadas a cabo pelos militares ucranianos, na tal condição de "carne para canhão" referida por Putin na mesma conferência internacional de segurança que teve lugar na capital russa.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.
O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas de fora o sector energético, do gás natural e em pate do petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 5,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.