As forças russas que a 24 de Fevereiro invadiram a Ucrânia tomaram a central nuclear de Zaporijia e, desde então, a Ucrânia tem acusado a Rússia de estar a criar condições para um desastre nuclear de grandes dimensões, embora a central nunca tenha deixado de funcionar e de produzir energia eléctrica para toda o país. Até que, na semana passada, vários roquetes explodiram nas imediações dos reactores, atingindo mesmo a área operacional. Quem disparou esses projécteis?
Apesar de as forças russas terem sob controlo deste 03 de Março esta central nuclear e a região de Zaporijia, integralmente, poucos dias depois, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, acusou a Rússia de ter feito os disparos perigosos contra as instalações onde se encontram seis reactores nucleares.
Do lado russo, a resposta foi imediata, negando as acusações e, através do Ministério da Defesa, acusar Kiev de estar a jogar um "jogo muito perigoso", sublinhando a ausência de qualquer lógica na acusação feita por Kiev quando as forças russas controlam a central, a região e não existe, para já, risco de perderem este domínio.
Mas, como é sobejamente conhecida como a primeira baixa em todas as guerras, a verdade só poderá ser encontrada por uma investigação externa, e é isso que a ONU pretende, com o Secretário-Geral, o português António Guterres, a apelar às partes que permitam o acesso de inspectores ao local para verificar se a segurança da planta foi afectada pelas explosões, tendo o chefe da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), Rafael Grossi, afirmado que existe de facto um risco sério de uma catástrofe nuclear muitas vezes superior ao acidente de Chernobil, em 1986, que fez dezenas de milhares de mortos, muitos milhares de feridos, que ainda hoje padecem do efeito das radiações, e obrigou milhões de pessoas a deslocarem as suas vidas da região.
A central nuclear de Zaporijia tem seis reactores que produzem até 64 K MW, o que compara, por exemplo, com os 4 K MW de Chernobil antes de ter sido desligada após o acidente grave de 1986.
Os analistas e estrategas militares ouvidos pelos grandes media internacionais defendem, com maior tendência, que estes ataques foram produzidos para obter um efeito mediático e não para acertar nos reactores, sendo, neste ponto, mais forte a possibilidade de terem sido disparados do lado ucraniano para recentrar a atenção da comunidade internacional neste conflito provocado pela Rússia, quando as atenções começam a ser redireccionadas para outros problemas no mundo, como a tensão no Mar do Sul da China, face a uma possível invasão de Taiwan pela China após a desafiadora visita da líder do Congresso dos EUA, Nancy Pelosi, a Taipé, na passada semana.
Mas há especialistas militares que colocam como possibilidade tratar-se de uma manobra arriscada da Rússia para forjar um ataque ucraniano de forma a acusar Kiev de comportamento irresponsável e de forçar os países ocidentais, aliados da Ucrânia, a enveredar por uma abordagem mais sensível a um acordo de paz que acabe com a guerra, visto que os ganhos até agora conseguidos por Moscovo, todo o Donbass e uma parte substancial do sul do país, incluindo uma parte importante da costa do Mar Negro, poderão ser considerados suficientes pelo Kremlin.
Outra possibilidade é que os russos usem a área da central para aquartelar militares e equipamento usando o risco nuclear como escudo de protecção.
ONU com as mãos na cabeça
Guterres considerou que um ataque deste género é "suicida", deixando este recado nas comemorações do 77º aniversário da explosão atómica de Hiroshima, a primeira do género sobre uma população, pelos Estados Unidos, em 1945, matando centenas de milhares de pessoas, na explosão directa e nos efeitos da radioactividade subsequentes.
"Apoiamos de forma total uma inspecção da AIEA, mas, para isso, urge permissão para aceder ao local e proceder aos trabalhos de estabilização da estrutura", disse o chefe da ONU. Esta central foi tomada pelas forças russas mas são ainda funcionários ucranianos que a mantêm em funcionamento.
Enquanto as partes em conflito trocam acusações sobre quem efectuou os disparos sobre a central nuclear, com Kiev a dizer que a Rússia é um "Estado terrorista" por proceder a estes ataques, e Moscovo a apontar ser "incompreensível como podem as forças ucranianas colocar em risco a segurança de toda a Europa apenas para obterem a possibilidade de, sem qualquer lógia, acusarem as forças russas de tal acto", a verdade permanece sob os escombros deste conflito que se aproxima rapidamente do final do seu 6º mês.
Na linha da frente, que se alarga cada vez mais a favor da Rússia, com as repúblicas separatistas do Donbass, Lugansk e Donetsk cada vez mais próximas de estarem totalmente sob controlo, faltando apenas uma parte da segunda, e com as posições cada vez mais consolidadas no sul, na província de Kherson, na costa do Mar Negro, e com o Inverno a aproximar-se rapidamente daquela zona do mundo, onde as temperaturas facilmente atingem os 20 graus negativos, tudo indica que este conflito no leste europeu se vá arrastar para 2023.
E isso significa em primeira linha que os efeitos colaterais desta guerra, desde logo a crise energética na Europa ocidental (União Europeia) se vai acentuar com o arrefecimento climático sazonal face ao embargo ao petróleo e ao carvão russo e às dificuldades crescentes no fornecimento de gás natural, o que pode levar a que os aliados ocidentais, incluindo os EUA, onde a crise económica ganha dimensões que não se viam há mais de quatro décadas, com a inflação a chegar aos 10%, a mudarem a agulha para uma abordagem mais favorável a uma saída para este imbróglio global, como, de resto, já é defendido por algumas figuras de referência ocidental, como Henry Kissinger, o antigo Secretário de Estado norte-americano.
Mas, enquanto esse aguardado com, cada vez maior, impaciência momento de assinatura de um acordo de paz não chega, do lado ucraniano aposta-se no repetido anúncio de uma contra-ofensiva a sul, para expulsar os russos de toda a costa do Mar Negro, na província de Kherson, embora tal ainda não tenha acontecido.
Por outro lado, segundo a imprensa internacional com jornalistas no terreno, as forças russas estão a consolidar posições com maior sucesso que o esperado no ocidente, apesar do apoio cada vez mais valioso em armamento norte-americano, como os famosos HIMARS, ou unidades de lançamento de roquetes de grande alcance e mobilidade.
E no capítulo da exportação de cereais ucranianos pelos portos do Mar Negro, depois do acordo conseguido pela intermediação da Turquia e da ONU, que envergonhou a União Europeia, que, contrariando décadas de investimento numa diplomacia de paz, agora enveredou, sob chefia da sua Comissão Europeia pela alemã Ursula Leyen, e da sua diplomacia pelo espanhol Josep Borrell, por uma posição de apoio claro à guerra, as coisas estão a seguir como planeado, com milhares de toneladas de, especialmente, trigo e milho a deixarem os portos em navios que são minuciosamente inspeccionados em Istambul para garantir que não servem para mais nada senão transportar grãos.
Este acordo de exportação de cereais, que envolveu a Rússia, a Ucrânia, a Turquia e as Nações Unidas está a ter tanto sucesso que o Secretário-Geral da ONU já o colocou como referência para um possível acordo de paz entre os beligerantes.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.
O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas de fora o sector energético, do gás natural e em pate do petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 5,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.