Quando em Istambul as delegações da Rússia e da Ucrânia, com intermediação do Presidente turco, Recep Erdogan, na terça e na quarta-feira, esboçavam o caminho para um cessar-fogo, apontando avanços importantes nas negociações de paz, embora ainda longe de satisfazerem as partes de modo a encaixar um acordo de paz, na China, o ministro dos Negócios Estrangeiros Wang Yi, aguardava em Tunxi, no leste do país, o seu homólogo russo, Sergei Lavrov.

Logo após o primeiro encontro entre Yi e Lavrov ficou claro que estavam ali para cumprir mais uma etapa do lançamento da semente de uma tempestade diplomática global que ameaça não deixar instituição sobre instituição das que nasceram no pós II Guerra Mundial e que deram aos países ocidentais, liderados pelos EUA, especialmente depois do colapso da União Soviética, em 1991, uma preponderância junto da chamada "comunidade internacional" que secundariza as grandes potências emergentes, como a Índia e a China - juntos são quase metade da população mundial - e ainda países como o gigante sul-americano Brasil ou a potência africana que é a África do Sul, e, também a Rússia, que, enquanto "herdeira" do colosso soviético, sente que falta ver a sua importância reconhecida, mesmo sendo o país com o maior arsenal nuclear do mundo.

No seu encontro de Tunxi, segundo a agência russa TASS, os chefes da diplomacia russa e chinesa voltaram a afirmar que urge criar uma "nova ordem mundial mais justa", sendo que a expressão foi usada pelo russo mas não desmentida, sequer retocada, pelo chinês, que, pelo contrário, disse que a cooperação entre Pequim e Moscovo é "sem limites" e está a crescer fortemente, o que é o mesmo que dizer que ambos estão apostados em mudar o rosto do mundo para que este, e as suas instituições, reflictam melhor a sua composição, de forma "multipolar, mais justa e democrática", nas palavras de Wang Yi e Sergei Lavrov.

O esboço desta plataforma transformadora, que tem, pelo pelo menos coincidentemente, o formato dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), e que nas recentes votações de resoluções propostas pelos EUA na ONU, de condenação da Rússia pela invasão da Ucrânia, de forma global, este grupo votou abstendo-se, ao mesmo tempo que recusavam, em uníssono, isolar comercialmente Moscovo, pelo contrário, aprofundamento os respectivos laços comerciais, o que foi um claro sinal ao ocidente.

E esse sinal está a dar frutos, primeiro com a recusa de alinhar nas sanções à Rússia pelos países ocidentais, embora criticando o avanço das forças sobre a Ucrânia, depois aprofundando as relações comerciais, com novos acordos nesta área, e depois com sinais evidentes de que está a crescer uma "aliança" assente no tripé Pequim-Moscovo-Nova Deli que quer ir mais longe e colocar um ponto final num mundo que tem os EUA como única superpotência, exercendo um domínio pesado sobre o resto do mundo através do controlo das instituições globais, desde logo as Nações Unidas, mas também de Breton Woods (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional).

Assente que ficou a solidez da "aliança" entre China e Rússia, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, segundo a agência Reuters, voou para Nova Deli, para uma visita de dois dias à Índia, com encontro marcado com o seu homólogo Subrahmanyam Jaishankar, estando em cima da mesa a consolidação das relações bilaterais e o seu aprofundamento com base no novo cenário global, onde o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, já deixou claro que nada beliscará as relações com Moscovo, tendo mesmo assinado há dias um gigantesco acordo comercial na área da energia e militar, sendo que quase toda a estrutura de defesa da Índia - o maior importador mundial de armamento a Moscovo - é composta por material de origem russo.

As preocupações do ocidente com o estreitamento das relações do "tripé" Moscovo-Pequim-Nova Deli está em evidência com o facto de, sem que estivesse previsto, com a visita de Lavrov à Índia, a ministra britânica dos Negócios Estrangeiros, Liz Truss, voou igualmente para Nova Deli, tal como Daleep Singh, o responsável norte-americano pela arquitectura das sanções de Washington à Rússia, ambos com a agenda preenchida com um ponto único: puxar Narendra Modi para o lado do ocidente de forma a isolar a Rússia no âmbito da punição pela invasão da Ucrânia.

Esta questão da proximidade da Índia à Rússia tem ainda um efeito diluente das sanções aplicadas pelo ocidente à Rússia, tal como com a China, porque Moscovo e Nova Deli, segundo a agência Blommberg, estão a concluir um acordo de pagamentos directos em rúpias e rublos, as respectivas moedas nacionais, o que esbate o efeito da expulsão da Rússia do sistema internacional de pagamentos SWIFT, o que provocou uma reacção fortemente crítica dos EUA e da Austrália ao primeiro-ministro Narendra Modi.

Esta batalha diplomática global, segundo alguns analistas, já pouco tem a ver com a Ucrânia, que, sendo o conflito que trouxe este processo para a luz do dia, não foi, de todo, o que gerou esta resposta, porque o mundo "secundarizado" pela actual "ordem mundial", desde logo os três gigantes Índia, Rússia e China, mas também Brasil e África do Sul, dois países, tal como a Índia, que se têm posicionado para ocupar um lugar permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, já é um "plano" antigo, que ganhou forma visível em 2006, com a criação dos BRICS (na foto), onde o confronto entre o "Ocidente" e as grandes economias emergentes se tornou um factor de preocupação antecipada e que agora ganha forma de posição de força que pode modificar as estruturas de poder no mundo tal como o conhecemos.

O desafio de Putin do "gás por rublos"

Mas se esta semana ficou, até hoje, 31 de Março, quinta-feira, marcada pelas negociações na Turquia e pelo encontro de Lavrov na China com Yi, e, já hoje, com o homólogo indiano, Subrahmanyam Jaishankar, em Nova Deli, a economia mundial pode estar prestes a dar um salto na cadeira, mais um, com o possível fechar da torneira do gás russo para a União Europeia, depois deste exigir o pagamento da matéria-prima na moeda nacional, o Rublo, e com a resposta clara a chegar de imediato: não!.

Putin deu como prazo limite para que os clientes do gás russo se conformarem a esta exigência 31 de Março, hoje. Se cumprir, as grandes economias europeias podem entrar em estado de choque, como é o caso da Alemanha, cuja indústria vive da energia russa, e onde os dirigentes das grandes indústrias já admitiram, como a BASF, que podem ter de fechar a totalidade das suas unidades produtivas, ou com o Governo de Berlin a dizer que terá, eventualmente, de racionar o abastecimento, com perdas de largas centenas de milhares de empregos.

Segundo conta a Lusa, o Presidente da Rússia apresentou hoje ao chanceler alemão, Olaf Scholz, e ao primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, as razões para o gás russo ter de ser pago em rublos, garantindo que não prejudicará as empresas europeias.

"A alteração do mecanismo de pagamento é implementada porque, violando as normas do direito internacional, os países membros da União Europeia (UE) congelaram as reservas cambiais do Banco da Rússia", explicou o Kremlin num comunicado onde resume uma conversa telefónica de hoje entre Putin e Scholz.

O Presidente russo também falou com o chefe do governo italiano, a quem explicou igualmente os detalhes desta medida, referiu o Kremlin.

Putin assegurou ao líder alemão que esta decisão "não vai piorar as condições estabelecidas nos contratos para as empresas europeias que importam gás russo", referiu a Presidência russa, que não deu detalhes.

"Foi acordado que haverá conversações adicionais entre peritos de ambos os países", segundo o Kremlin.

A Alemanha tem sido um dos países mais relutantes em incluir o sector energético nas sanções contra Moscovo devido à guerra na Ucrânia, uma vez que 55% do gás que consome provém da Rússia.

Após o anúncio de Putin de exigir em rublos o pagamento pelo gás russo, a UE rejeitou categoricamente esta exigência, dizendo que constitui uma violação dos contratos existentes.

Só no final do dia de hoje se saberá até onde foi esta ameaça do senhor do Kremlin...

Zelensky não cede "nada" à Rússia

Este problema pode vir a durar porque o Presidente ucraniano, depois de ter estado ao telefone com o Presidente dos EUA, e do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, veio colocar água frio no calor do optimismo negocial.

Zelensky disse, num novo vídeo divulgados nas redes sociais, que não acredita nas frases bonitas da Rússia, a propósito da promessa de Moscovo de começar a retirar forças dos arredores de Kiev.

O Presidente ucraniano disse mesmo que as suas forças estão prontas para continuarem a combater os russos no leste, depois de o porta-voz da Defesa russa ter anunciado e o grossos das colunas militares do norte iriam ser deslocadas para o Donbass, no leste, onde a Rússia está a apoiar as forças locais das repúblicas de Donetsk e Lugansk, apenas reconhecidas, antes da guerra, pela Rússia.

"Não acredito nem numa palavra ou frase bonita dos russo", disse, assegurando que vai lutar por cada centímetro do território, o que, se for cumprido, vai levar à eternização desta guerra, porque Moscovo já fez saber que a Península da Crimeia, anexada em 2014, depois de um referendo popular, e as repúblicas do Donbass, não são matéria de negociação.

Tanto o Governo de KIev como os governos ocidentais, desde logo o britânico e norte-americano, têm, nas últimas horas, deixado dúvidas sérias sobre o cumprimento das promessas russas de retirada de forças no norte para as reposcionar no leste, ao mesmo tempo que são noticiados nos media ocidentais um cada vez maior número de episódios de problemas no seio das forças russas, incluindo recusas dos militares em cumprir as ordens dos comandantes e um crescente número de baixas nas fileiras do Exército de Moscovo.

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro, depois de semanas de impaciente expectativa, as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional, criticando fortemente o avanço desta organização de defesa para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de KIev da soberania russa da Península da Crimeia, integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1992, com o colapso da União Soviética.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios...

Milhares de mortos e feridos e mais de 4 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.