A Assembleia-Geral das Nações Unidas votou, já na noite de quinta-feira para hoje, sexta, 24, mais uma resolução a condenar a invasão russa, pedindo a retirada incondicional das suas forças, com 141 votos a favor, 32 abstenções, que incluem Angola, Índia, China, África do Sul e Paquistão, e sete contra, mais dois países que na última votação visando uma condenação da Federação Russa, se tinham abstido, como o Mali.

Esta votação, onde, com destaque, surge o regresso de Angola à sua posição histórica de abstenção, confirma uma larga maioria de Estados-membros ao lado da Ucrânia, votando pela saída dos russos da geografia ucraniana, mas, igualmente relevante, é que esta votação voltou a deixar claro que Moscovo está longe de isolada nesta contenda, com as grandes potências asiáticas, China e Índia a absterem-se, assim como as igualmente relevantes em África Angola e África do Sul.

A abstenção, num tema que gera visões radicais e extremos bem vincados, é comummente tida como um posicionamento mais próximo dos interesses do sujeito da votação, neste caso a Rússia, mas deixa ainda em evidência que, em matéria de população global, são mais aqueles que se juntam do lado do mapa não hostil aos russos, desde logo com os quase 3 mil milhões de habitantes da China e da Índia, do que os que se posicionam claramente contra Moscovo.

Como acontece amiúde, uma votação da Assembleia-Geral da ONU não é vinculativa, e, como tal, a Rússia não está obrigada a retirar os seus militares da Ucrânia como exige o documento agora aprovado.

O roteiro para a paz "Made in China"

Como estava já anunciado, a China apresentou esta manhã de sexta-feira um plano de paz que começa por apelar a um cessar-fogo imediato, o fim imediato das sanções ocidentais à Federação Russa e a abertura sem demora de corredores humanitários para levar a urgente ajuda a milhões de ucranianos e permitir às populações civis para deixarem as zonas de combates.

Neste documento, que foi dado a conhecer através de um comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, o cessar-fogo deve ser seguido de um entendimento entre as partes para uma gradual redução das tensões, o que deverá, na melhor das hipóteses, criar condições para que Moscovo e Kiev se sentem à mesa das negociações.

Com 12 pontos claros e inequívocos, este plano de paz "Made in China", que tamém exige compromisso sólido de não usos do nuclear em nenhuma circunstância, é, para já, a melhor das oportunidades de acabar com este conflito desde que, em Março de 2022, poucos dias depois da invasão, e quando delegações russas e ucranianas já tinham um calendário elaborado de negociações e estas decorriam com alguma etapas já cumpridas, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, irrompeu por Kiev com a missão clara de fazer colapsar as conversações em curso e voltar a colocar a guerra de novo nos trilhos, prometendo, para isso, todo o apoio militar e financeiro da NATO e da União Europeia à Ucrânia.

Coincidindo propositadamente com o dia em que se cumpre um ano da invasão, além do cessar-fogo imediato, da abertura dos corredores humanitários, o fim das sanções ocidentais e a redução da tensão entre Kiev e Moscovo através de uma aproximação guiada por este documento, Pequim propõe ainda a elaboração de um novo "mapa" para a manutenção e alargamento das garantias para a exportação de cereais e fertilizantes atraés do Mar Negro, ucranianos e russos.

A China pede, como está plasmado no comunicado do MNE, que as partes envolvidas, russos, ucranianos e países da NATO e da União Europeia, se mantenham "focadas e racionais, mantendo uma postura que não alimenta as chamas da guerra e agrave as tensões, prevendo a deterioração das conquistas que forem sendo dadas passo a passo".

Pequim pede ainda que todos os envolvidos "apoiem ucranianos e russos para que seja possível caminhar na mesma direcção e que o diálogo directo seja retomado tão rápido quanto possível" até que o cessar-fogo inequívoco dê lugar a um acordo de paz concreto, sendo que este documento emanado do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês sublinha que o autor, a China, pugna pela sua neutralidade, defende a soberania, independência e integridade territorial de todos os países.

Pede ainda que seja posto fim ao que chama "a mentalidade de guerra fria", naquilo que é um claro recado para os Estados Unidos e a sua continuada batalha pela manutenção do domínio global através da sua Ordem Mundial baseada em regras.

Se este plano vai ter ou não sucesso, é difícil de prever, mas o peso intrínseco do proponente, a segunda maior economia do mundo, e o país mais populoso do planeta, sendo igualmente uma das maiores potências militares, com o, alegadamente, 3º maior arsenal nuclear do mundo, é um factor a ter em conta, levando mesmo o Presidente ucraniano a vir a público dizer que está interessa e discutir o seu conteúdo.

Volodymyr Zelensky, durante a recente visita do primeiro-ministro espanhol, Pedro Sanchez, a Kiev, disse que este avanço chinês "é um primeiro passo" importante e merece a sua atenção, embora as suas palavras a seguir não indiciem nada de bom no sentido de um cessar-fogo.

Ainda nesta sexta-feira é esperado um discurso de paz do Presidente chinês, Xi Jinping, em Pequim, embora tanto a votação na ONU como o discurso agressivo de Zelensky em Kiev, a marcar este dia, podem fazer com que o líder chinês não avance com esta intervenção, até porque o seu papel de mediador, segundo alguns analistas, foi diluído com o anúncio de uma visita a Moscovo para breve.

Zelensky repete que a paz só é possível com saída de todos os russos

O chefe do Governo ucraniano, já esta manhã, com a alvorada do dia em que se cumpre o primeiro "aniversário" da mais devastadora guerra na Europa desde 1945, ano em que terminou a II Guerra Mundial, voltou a tocar na mesma tecla, ignorado a proposta chinesa, dizendo que as suas forças vão derrotar sem dó nem piedade as forças russas invasoras, sublinhou que qualquer termo de paz só pode ser conseguido com a saída do último solado de Moscovo do último centímetro de território ucraniano, incluindo a Península da Crimeia, anexada em 2014 pela Federação Russa após referendo popular.

Com estas palavras, Zelensky retoma a posição de que as igualmente anexadas províncias de Donetsk e Lugansk, no Donbass, historicamente pró-russas e russófilas, e ainda Kherson e Zaporijia, em 2022, também após referendos esmagadoramente vitoriosos para Moscovo mas não reconhecidos pela comunidade internacional, vão ser retomadas a bem ou a mal por Kiev, o que contrasta com a determinação russa de nem sequer admitir negociar esses territórios que são já, na sua óptica, parte inalienável da "Grande Mãe Rússia".

Vladimir Putin já deixou claro que não há diferença nenhuma na forma como as forças armadas russas defendem estes novos territórios com os de toda a restante Federação Russa, o que é uma indicação de um impasse que pode ser trágico por muito tempo.

Para já, a União Europeia não teve a mais positiva abordagem a este documento chinês, com o embaixador de Bruxelas em Pequim a referir-se a ele como "uma posição da China e não um plano de paz".

Jorge Toledo, citado pelas agências á esta manhã de sexta-feira, admitiu, no entanto, que a União Europeia vai estudar com atenção esta posição chinesa, sublinhando que se este se revelar "um avanço positivo para a Ucrânia, então sê-lo-á também para a União Europeia", até porque o Presidente ucraniano já disser ser um passo positivo e que vê com bons olhos o assumir chinês de um papel mais activo neste processo.

Ao mesmo tempo, naquilo que não é uma abordagem diplomaticamente inteligente, segundo alguns analistas, a encarregada de negócios da Ucrânia em Pequim, Zhanna Leshchynska, citada pela Al Jazeeera, disse que espera agora que Pequim também venha a público exigir a retirada das tropas russas do seu país.

E dos Estados Unidos da América, de quem depende claramente a acapacidade ucraniana de manter o seu esforço de guerra contra a invasão russa, já vieram sublinhar, através do porta-voz do Departamento de Estado, similar ao Ministério das Relações Exteriores, que a condição de parceiro próximo de Moscovo retira a Pequim a condição de mediador neutral.

Apesar disso, Ned Price adiantou aos jornalistas, em Washington, que os Estados Unidos vão estudar com o devido rigor a proposta chinesa, notando ainda que os EUA "querem ver uma paz durável e sustentável, mas estamos cépticos de que uma proposta com esta natureza (da China) seja um passo construtivo para o futuro".

... pode uma guerra sem futuro ter futuro? Não!

Esta guerra não tem futuro, está condenada a ser "fuzilada" por um acordo de paz porque ninguém a pode vencer. Como todas as outras, também esta acabará na trincheira das negociações. Até lá, vai "só" mudar o mundo tal como o conhecemos.

O leste da Ucrânia - como o ocidente vê o campo de batalha -, as novas fronteiras da Federação Russa - como é visto a partir de Moscovo -, é o palco de uma guerra com todos os condimentos de um confronto tradicional, mas nela está muito mais em jogo que os ganhos territoriais sobre a trincheira do inimigo: é uma nova balança de poderes globais que está a ser desenhada a sangue e lágrimas.

Pouco depois de 24 de Fevereiro de 2022, os ministros dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, e da China, Wang Yi, estiveram reunidos para definir como objectivo estratégico da sua parceria "ilimitada" a reconfiguração da Ordem Mundial, visando substituir a actual, baseada em regras, por uma definida pela sujeição a uma multipolaridade de centros de decisão e à cooperação.

A actual Ordem Mundial é fruto do "estirador" dos vencedores ocidentais da II Guerra Mundial, com os Estados Unidos a liderar o ocidente, definindo as "regras" para as quais criaram os "vigilantes" globais, desde o Banco Mundial e o FMI, às próprias Nações Unidas, onde o ocidente tem a maioria do Conselho de Segurança, o coração da ONU para todos os efeitos, ou a NATO.

Quando os líderes ocidentais, do Secretário da Defesa dos EUA, Loyd Austin, à presidente da Comissão Europeia, Ursula Leyen, dizem que a Rússia "tem de ser derrotada no campo de batalha", o que estão a dizer é que derrotar os russos é a única forma de impedir o triunfo do eixo Pequim/Moscovo na construção de uma Ordem Mundial fora do controlo directo do ocidente alargado.

Mas e se Kiev claudicar neste conflito que se trava há um ano, faz precisamente nesta sexta-feira, 24, um ano?

Embora seja impossível de adivinhar o futuro, é razoável admitir que o eixo Pequim-Moscovo, caso o ocidente colapse no seu esforço de guerra de braço dado com a Ucrânia, se alargará e poderá agregar outras capitais, com algumas potências médias, como a África do Sul, ou grandes, como a Índia, neste horizonte, tendo, então, mais força para levar aos grandes palcos mundiais a proposta de alterar a Ordem Mundial forjada pela pena do ocidente por uma outra, onde sobressaia como azimute a multipolaridade e a cooperação inter pares.

Se esta nova ordem triunfar, não é possível saber se será melhor, ou, pelo menos, mais justa, que aquela que vigora desde os anos de 1950, mas sabemos que a que existe levou a um mundo onde quase metade da Humanidade - 8 mil milhões de pessoas - nasce com fome e morre com fome, acorda sem cumprir os seus ideais e vai dormir sem poder sonhar com dias melhores...

O mais certo é que não se chegue tão longe e o conflito termine sem um vencedor no campo de batalha, triunfando, finalmente, o bom senso. Como será o novo desenho da geografia russo-ucraniana, ninguém pode saber, para já, mas a Ordem Mundial que nos Governa há 70 anos, tem os dias contados... seja de forma radical, seja com acertos de agulhas feitos no day after ao aordo de paz que vai ser, sem dúvida, assinado entre russos e ucranianos, mais cedo ou mais tarde...

Nesse caso, não veremos mudanças drásticas, veremos, seguramente, novas vozes, mais justiça, e é em África onde está mais será apreciada... Isto, se um catastrófico "cisne negro" nuclear não atravessar o espaço aéreo da decência mínima...

Esta guerra, que não pode ter vencedores fulgurantes, vai mudar muito mais que fronteiras de dois países, vai mudar o curso da História. E África, se houver visão, pode ser um dos vencedores do... futuro!

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro de 2022 as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era (é) a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.

O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.

A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, incluindo o sector energético, do gás natural e em parte do petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 9,5 milhões de refugiados internos e nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.