Nos últimos dias de guerra, lá onde os mísseis lançados à distância explodem diariamente e os soldados lutam casa a casa na estratégica cidade de Mariupol, na costa do Mar de Azov, sul da Ucrânia, onde as forças russas estão quase a conquistar o último reduto do Batalhão Azov, que já recusou a rendição a troco da vida proposta por Moscovo, uma curva perigosa está a suceder nesta guerra desgastante: Volodymyr Zelensky acaba de dizer, num dos seus vídeos de guerra diários, que está pronto a retirar-se das negociações se as forças invasoras aniquilarem os homens que restam a defender esta cidade portuária.
Isto, porque a cidade de Mariupol, que o Ministério da Defesa russo veio dizer, também num dos seus comunicados de guerra diários, que está tomada em mais de 95%, restando apenas as instalações subterrâneas da fábrica de metalo-mecânica Azovstal - onde resistem ainda centenas de homens prontos a não ceder até ao último fôlego -, é apresentada por Moscovo como um ponto de viragem decisivo nesta guerra porque permite um corredor livre entre a Península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, depois de um referendo, e as repúblicas independentes da região do Donbass, Donetsk e Lugansk, no leste, habitada por povos com grande afinidade cultural e linguística com a "vizinha" Rússia.
O ultimato foi feito pelos russos e recusado pelos resistentes do Batalhão Azov, constituído também por mercenários estrangeiros, alegadamente, segundo o Ministério da Defesa russo, que disse ter interceptado comunicações rádio ucranianas que o demonstram, por ordens directas de Kiev, que "não quer a rendição", o que criou um novo impasse neste conflito e levou a um ainda maior estreitamento nas negociações de paz, visto que o Presidente Zelensky já veio dizer que se as forças russas aniquilarem aquela resistência ucraniana, deixará de haver espaço para manter as conversações de paz.
Este cenário cria um problema sério, porque, se estes relatos estiveram certos, os russos não podem deixar de manter a pressão militar sobre o que resta do Batalhão Azov, os perto de 700 homens que resistem não se podem render, o que, face à enorme superioridade militar russa, se prevê, mais ou menos longo, um desfecho favorável às forças de Moscovo, o que garante que o Governo de Kiev deixa a mesa das negociações, o que conduz a um prolongamento da guerra até que, em teoria, não sobre um homem armado de um ou do outro lado.
Isto, quando se sabe que essas negociações pouco ou nada evoluíram desde que tiveram início, poucos dias após o avanço das colunas russas sobre a Ucrânia, a 24 de Fevereiro, e sendo igualmente conhecidos os avanços e recuos do líder ucraniano, que ora vai anunciando intenção de negociar com o Presidente russo, Vladimir Putin, ora deixa de o querer fazer e pede mais e mais armamento à NATO para manter os combates, enquanto não consegue o seu maior objectivo, que é uma zona de exclusão aérea da Aliança Atlântica, mesmo que isso, como Moscovo e Washington já o admitiram, fosse garantia de uma III Guerra Mundial que rapidamente passaria para a dimensão nuclear, garantindo a destruição mútua e total.
Com o impasse nas negociações, como Putin veio dizer na semana passada, os combates estão-se a deslocalizar do norte da Ucrânia, junto à capital, Kiev, para o sudeste, junto ao Donbass, e sul, entre a Crimeia e a estratégica cidade portuária de Odessa, onde as forças russas estão a ganhar dimensão em homens e poder de fogo, e onde a Ucrânia tem perto de 50 mil homens, os melhor equipados do seu Exército, segundo Zelensky, com tudo para que ali se trave uma batalha, se não a derradeira, pelo menos um confronto decisivo para o desenlace neste conflito.
Se essa batalha vier a ser travada, segundo os analistas militares, será de modo a decidir o futuro e o provável vencedor deste conflito, tendo já o prazo estabelecido, que é 09 de Maio, porque é quando a Rússia comemora, anualmente e com uma gigantesca parada militar, o maior feito da sua história, com a derrota das forças nazis da Alemanha de Hitler, pelo Exército Vermelho da então União Soviética, em 1945, a que chama "O Dia da Vitória".
O Inverno diplomático em Kiev
E é com os olhos postos nessa grande batalha, que os analistas antecipam vir a ser apenas comparável a algumas das maiores que tiveram lugar na II Guerra Mundial, que Volodymyr Zelensky tem insistido em pedir mais armas, tendo mesmo elaborado uma lista, que inclui blindados, helicópteros e mísseis variados, ao mesmo tempo que diz já não acreditar no mundo face ao que considera ser uma resposta fraca no apoio militar exterior, apesar de diariamente lhe estarem a chegar cargas com moderno material bélico enviado pelos países-membros da NATO.
Esses carregamentos de material bélico estão a chegar à Ucrânia, o que tem lavado a uma intensificação dos ataques russos através de mísseis de longo alcance com elevada precisão, procurando destruir armazéns onde estejam armazenados blindados e mísseis anti-tanque e anti-aéreos fornecidos pelos países ocidentais, ou as vias por onde chegam ao país, como caminhos-de-ferro e portos marítimos ainda existentes.
Mas Zelensky, provavelmente devido ao cansaço na produção de comunicações diárias, com a redefinição da sua estratégica a acontecer ao minuto, tem estado a enfraquecer a sua linha de defesa diplomática devido a erros que alguns analistas de comunicação e diplomáticos consideram graves, como é o caso, primeiro, de fechar a porta, com estrondo, na cara do Presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, que na passada semana queria ir a Kiev e não lhe foi permitido, porque, alegou o Governo ucraniano, se trata de um antigo "amigo" de Putin.
Já esta segunda-feira foi conhecido que Zelensky voltou a cometer uma "gaffe" que os mesmos analistas consideram igualmente grave, uma desfaçatez diplomática, ao ter "convidado" o ainda Presidente francês e candidato à renovação do mandato, na 2ª volta das eleições presidenciais francesas, que vão decorrer no próximo Domingo, Emmanuel Macron, para se deslocar a Kiev para lhe "mostrar o que é um genocídio", o que pode ser entendido como uma chamada de atenção irónica depois de o Chefe de Estado francês ter pedido cautela e provas concretas sobre o alegado massacre de Bucha, pequena cidade a norte da capital onde foram encontrados dezenas de corpos nas suas ruas após a saída das forças russas.
Volodymyr Zelensky fez este convite "jocoso" a Macron depois de o Presidente norte-americano, Joe Biden, e o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, terem alinhado de imediato, com ligeiras nuances, na confirmação de que se tratou de um "genocídio" sem que isso tenha sido atestado por nenhum organismo internacional com essa função.
O genocídio provado e sem dúvida que está mais próximo da memória colectiva mundial ocorreu em 1994, no Ruanda, onde mais de 800 mil tutsis foram aniquilados pela maioria Hutu, numa provada e intencional acção que visava matar todos os membros daquela etnia. A chacina de 6 milhões de judeus por Hitler na II Guerra Mundial é outro genocídio bem documentado.
Todavia, do que pode ser perceptível nas palavras da presidente da Comissão Europeia, a empenhada apoiante declarada de Kiev, a alemã Ursula von der Leyen, apesar destes deslizes do líder ucraniano e do seu chefe da diplomacia, Dmitri Kuleba, o peso das sanções aplicadas à Rússia, depois da invasão iniciada a 24 de Fevereiro, vai vergar Moscovo em pouco tempo...
O efeito Ursula e a Primavera em Breton Woods
Ursula von der Leyen disse, citada pelos media europeus, que é sua esperança que a Rússia entre em incumprimento com as suas obrigações financeiras internacionais, sendo que um "default", por norma, gera dificuldades acrescidas nas condições de crédito, na confiança dos credores e na capacidade nacional de investimento, o que, em circunstâncias normais, leva os países nessa condição à condição de pária financeiro internacional.
Porém, o país em "default", como será o caso da Rússia, se von der Leyen estiver certa nas suas previsões, estar em guerra e ter as suas contas no exterior congeladas, devido às sanções ocidentais, que se estima serem superiores a 350 mil milhões em USD e euros, e que não pode usar para pagar os seus compromissos, pode levar a outro tipo de desfecho.
Ursula von der Leyen está correcta na ideia de que as sanções estão a ter um impacto pesado, tendo em conta o que acaba de afirmar a chefe do Banco Central russo, Elvira Nabiullina, mas longe, ainda, de um esmagamento demolidor.
O peso das sanções é já reconhecido oficialmente pelas autoridades russas, com a governadora do Banco Central da Rússia, Elvira Nabiullina, segundo a Russia Today, a dizer no Parlamento (Duma) que o país terá de se adaptar rapidamente ao efeito da sanções, com uma mudança global da sua economia.
"A nossa economia está a entrar num período difícil de mudanças estruturais associadas às sanções, que, primeiro, afectaram o sistema financeiro mas agora começam a ter um impacto forte na economia", disse.
Apesar de o país ainda ter reservas substanciais, mais de 300 mil milhões USD, especialmente em outro e na moeda chinesa, o Yuan, Elvira Nabiullina admite que estas não chegam para muito mais tempo mantendo a estrutura económica do país sem alterações substanciais, sendo mesmo necessário "definir um novo modelo económico".
Uma das medidas em curso no país é o desvio do fluxo de recursos naturais para a região asiática, especialmente a China, mas essa mudança demora a ser implementada totalmente porque toda a sua estrutura, especialmente nos gasodutos, está virada para ocidente.
Outra é a procura de uma alteração no actual modelo de comércio global assente no dólar norte-americano, que os russos, e, embora sem que isso esteja totalmente confirmado, também os chineses e indianos, estão apostados em substituir por outro modelo substanciado no uso das respectivas moedas nacionais para os negociais bilaterais.
Para já...
... é preciso perceber se isso influi ou não na eventual mudança de políticas na Rússia e na sua estratégia face à guerra, até porque o Governo russo já disse que vai pagar todos os créditos nos prazos estabelecidos em moeda nacional, o Rublo, à taxa de câmbio diária, por não ter acesso, devido às sanções, ao seu dinheiro colocado no sistema financeiro internacional, apesar de já ter resolvido um desses momentos pagando através de uma das contas congeladas, o que obrigou a um levantamento breve das sanções por ser esse o interesse imediato do credor ocidental.
Pode ser também decisivo para o desfecho desta guerra o resultado da reunião anual do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial (BM), com as instituições de Breton Woods a terem, sem dúvida, em cima da mesa, como ponto principal, a questão dos efeitos deste conflito no leste europeu na economia mundial, sendo já, apesar de se estar no início do problema, devastadores em grande parte do mundo, desde logo nas regiões mais pobres, como África, Ásia e partes da América do Sul, onde os bens alimentares essenciais já começam a faltar ou estão tão caros que os menos favorecidos não os conseguem adquirir.
A Rússia e a Ucrânia são os maiores produtores de cereais do mundo, a Rússia é o país com mais recursos naturais minerais em todo o planeta, entre estes muitos dos considerados estratégicos, desde logo o petróleo, o gás, o carvão, o urânio, terras raras... e, não menos importante, fertilizantes e adubos, e a Ucrânia é um dos poucos produtores mundiais de alguns elementos para o fabrico de componentes essenciais nas telecomunicações e ligas metálicas para a indústria aeronáutica e outras com recurso a tecnologia avançada.
Alguns analistas admitem que, deste encontro anual do FMI e BM, que vai durar toda a semana, e face às consequências devastadoras na economia ocidental, devido ao efeito ricochete das sanções na Europa e nos Estados Unidos, além da destruição económica nos países menos favorecidos, poderá surgir a pressão que falta para que Kiev e Moscovo se sentem à mesa das negociações e ponham fim a esta guerra...
Nestes encontro de Primavera, o FMI vai divulgar a actualização das suas projecções económicas para o mundo, sendo já certo que vai cortar nas previsões para 2022 e 2023, anunciou a sua directora-geral.
Kristalina Georgieva admitiu que o impacto do conflito vai contribuir para uma revisão em baixa para quase 150 países, representando 86% do PIB mundial.
A discussão de medidas que permitam aliviar a pressão dos efeitos da guerra nos mais pobres, com as palavras recentes do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, em pano de fundo, tendo este dito que um dos mais devastadores efeitos é que 1/5 da população mundial, mais de 1,7 mil milhões de pessoas, estão à beira do abismo da fome, com crescentes dificuldades em encontrar forma de lhes acudir devido à inacessibilidade dos cereais da Ucrânia, e parte dos da Rússia, devido às medidas nacionais tomadas nesse sentido.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional, criticando fortemente o avanço desta organização de defesa para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas der fora o sector energético, gás natural e petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 4 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.