Quando se esperava que o Presidente da Ucrânia chegasse a Washington, naquela que foi a primeira visita ao estrangeiro desde que a guerra começou, há 10 meses, há 300 dias, e, depois das boas-vindas, ouvisse dos lideres norte-americanos, desde logo do Presidente Joe Biden, e da líder do Congresso, Nancy Pelosi, palavras de encorajamento para mudar o discurso da versão de guerreiro para a de político em busca da paz, mesmo que condições de geometria variável mas sem deixar cair o essencial para Kiev, o que sucedeu foi que tanto Biden como Pelosi fizeram precisamente o contrário.

Se Nancy Pelosi, que deixa o cargo de presidente da Câmara dos Representantes, se dirigiu a Zelensky como "O verdadeiro herói do mundo", que se bate pela liberdade e democracia muito além das suas fronteiras, Biden foi ainda mais longe, garantindo-lhe, mal tinha aterrado da longa viagem desde a capital ucraniana, que os EUA e a sua indústria militar estarão com a Ucrânia "até onde for preciso e durante o tempo que for necessário", presenteando a "coragem abnegada" dos ucranianos com um novo pacote de apoio de 45 mil milhões - a primeira tranche de 1,8 mil milhões já seguiu -, atirando o total para além dos 100 mil milhões, incluindo agora os sistemas de defesa anti-aérea mais sofisticados do mundo, Patriot.

Volodymyr Zelensky não se fez rogado e quando lhe perguntaram o que poderia querer depois de ter garantias de que iria ter as muito pretendidas baterias Patriot, respondeu "mais Patriot para derrotar o regime terrorista russo e expulsar as forças do terrorista Putin da Ucrânia", o que acabou por complementar pouco depois, quando da recepção na Casa Branca, onde deu a primeira conferência de imprensa em solo americano, seguiu para o Congresso, onde se dirigiu aos quase 500 representantes e 100 senadores, dizendo-lhe olhos nos olhos que o seu apoio sem limites é fundamental para derrotar Moscovo.

Ali, sempre com a sua roupa de estilo militar, foi recebido com uma ovação ruidosa, defendendo junto dos congressistas, sempre tendo em mente que o apoio sem rugosidades que tem agora, contando para isso com as maiorias dos Democratas de Joe Biden nas duas câmaras do Congresso, vai alterar-se e ser menos aveludado, embora não se possa, para já, perceber a dimensão das alterações, apenas que os Republicanos são menos propensos a passar cheques em branco ao regime de Kiev.

Para apelar ao coração de Democratas e Republicanos, Zelensky procurou falar-lhes ao coração, lembrando o sangue que corre nas trincheiras do leste ucraniano para conter a invasão russa, comparando as forças de Moscovo às colunas da Alemanha nazi que na II Guerra Mundial invadiram a então União Soviética de Estaline, tendo sido travados com pesadas perdas humanas e materiais do Exército Vermelho, a leste, e, a oeste, pelas forças ocidentais lideradas pelos Estados Unidos, sublinhando que sem o fluxo contínuo de armas americanas para as forças que combatiam Hitler uma vitória Aliada seria muito mais difícil, se não mesmo impossível.

Mas esta ida de Zelensky a Washington contou ainda para outro "campeonato", que é o da duração da guerra, que cada vez mais líderes de países europeus e de outros continentes anseiam por encurtar, ficando-se a saber que toda a programação norte-americana de apoio militar e financeiro está a contar com a extensão do conflito ao longo de 2023, até porque, como Joie Biden sublinhou, os sistemas de defesa Patriot só estarão activos daqui a alguns meses e as verbas em cima da mesa terão de ser reafirmadas quando a maioria dos Representantes já estiver nas mãos dos Republicanos por enquanto chefiados por Donald Trump.

Citado pelo The Guardian, Zelensky afirmou no Congresso que os dois países, Ucrânia e EUA, "são aliados nesta batalha que terá no próximo ano um ponto de viragem, quando a coragem dos ucranianos e o apoio dos norte-americanos vão garantir a liberdade comum no futuro, a liberdade das pessoas que lutam pelos mesmos valores".

Isto, que se traduz facilmente por um apelo aos afectos pela liberdade dos congressistas norte-americanos, mas não aos actuais, ao que chegarem no início do ano, transformando a maioria actual, dos Democratas, que aprova todas as ajudas a Kiev sem rebuço, pela Republicana, cujos líderes já fizeram questão de que não vão permitir cheques em branco para Kiev, embora sem que o apoio seja posto em causa, esperando-se que seja menos volumoso e com maior controlo do percurso das armas e do dinheiro, sobre o qual têm já dúvidas tornadas públicas, nomeadamente a melindrosa indicação de investigações das secretas sobre a venda de material doado a Kiev no mercado negro do armamento internacional.

Depois de sublinhar a bravura das suas forças armadas, da troca de medalhas com Biden, de agradecer o apoio norte-americano, Volodymyr Zelensky jogou a sua última cartada, aludindo à já clara vitória ucraniana contra a Rússia de Vladimir Putin pelas "mentes em todo o mundo", faltando agora a vitória no campo da batalha que mude o curso da guerra, o que só será possível com o ininterrupto apoio dos EUA.

Na sua intervenção no Congresso, na conferência de imprensa que o precedeu e nas breves palavras de que dirigiu aos jornalistas quando estava reunido com Joe Biden, nem uma palavra foi dirigida pelo Presidente ucraniano à possibilidade de negociações, excepto quando, repetindo-o por duas vezes, disse que Putin pode acabar com esta guerra amanhã mandando retirar as suas forças de todo o território ucraniano, o que sabe de antemão, como o sabe Joe Biden, que é uma impossibilidade, tendo sublinhado, por entre uma ou outra piada, relembrando o cómico que foi outrora, que o dinheiro dos americanos enviado para Kiev "não é caridade, é um investimento na democracia e na liberdade", como que a criticar a redução paulatina das remessas de Washington, apesar das declarações contraditórias com esse facto.

Mais, Joe Biden também não fez qualquer alusão consistente à possibilidade de paz - excepto uma referência passageira a uma "paz justa" que é a saída sem condições dos russos de todo o território ucraniano, incluindo a Crimeia, o que é uma impossibilidade reafirmada pelo Kremlin amiúde -, tendo garantido ao seu homólogo que este, bem como as suas forças armadas e o seu Exército, "nunca caminharão sozinhos" nesta batalha que se trava em mais de 1.200 kms contra as forças russas, que disse estarem muito melhor equipadas em material militar, com mais artilharia, blindados, aviões... voltando a dizer que conta com o "mundo dos valores democráticos e da liberdade" para manterem o fornecimento de armas e dinheiro lubrificado com destino a Kiev.

Depois desta visita terminar, a questão essencial é perceber se foi suficiente para alterar a continuada perda de apoio popular nos EUA, ligeiramente, mas persistente, a ponto de haver sondagens que já se encaminham para um saldo negativo, e se as suas palavras, mais ou menos emotivas, mais ou menos desafiantes, foram quanto baste para alterar a disponibilidade mental entre os Republicanos de Donald Trump para não desacelerar o apoio militar e financeiro a partir de Janeiro de 2023 e se os agora prometidos mais 45 mil milhões USD serão efectivamente confirmados ou serão sujeitos a novas regras e controlo.

Para já, se a guerra na Ucrânia estava a perder fôlego mediático nos últimos meses, assoberbados que estavam os media de todo o mundo com o mundial de futebol e a crise económica que ameaça transformar-se numa recessão planetária, esta chegada do "herói absoluto" como lhe chamou Nancy Pelosi, aos EUA, voltou a acender a fornalha do apoio nas redacções, quase sem excepção, do jornalismo ocidental...