Como o Novo Jornal noticiou desde os primeiros disparos, este conflito ganhou densidade e somou episódios trágicos uns atrás dos outros, desde logo os milhares de mortos até agora registados, vítimas directas da guerra, de um lado e do outro, e depois as centenas de milhares de deslocados internos e refugiados nos países vizinhos, especialmente no Sudão do Sul, com relatos de terror produzidos pelas escassas organizações internacionais com acesso às frentes de batalha.
A Etiópia é o segundo mais populoso país do continente africano e esta crise, se não for estancada a tempo, tem um potencial gigantesco para desestabilizar toda a África Oriental- Corno de África, o que justifica a atenção especial que as Nações Unidas e a União Africana lhe estão a dar, até porque a organização pan-africana, com sede na capital etíope, tem como prioridade cimeira acabar com os conflitos no continente, militares e político-militares e, agora, tem a guerra à porta de casa.
Os guerrilheiros da TPLF, compostos essencialmente por elementos saídos dos quartéis das Forças Armadas regulares da Etiópia no norte do país, rebelaram-se em Novembro de 2020 por entenderem que o Governo de Ahmed os estava a afastar do centro do poder quando, nas duas décadas anteriores à chegada do Prémio Nobel 2019 ao cargo, foram eles que governaram o pais e detinham toda a máquina administrativa etíope centralizada em Adis Abeba.
Com o despoletar dos combates, inicialmente na região de Tigray - o início de uma nova tragédia esquecida em África? - , mas depois alastrando-se às províncias a sul e agora o conflito está a caminho da capital, o que obrigou o primeiro-ministro a ir anunciar nas últimas horas que ele próprio vai avançar para a frente dos combates para, dali, dando o exemplo, liderar as suas forças num último esforço para interromper esta caminha aparentemente triunfal da LPTF e dos seus aliados regionais, internos e externos.
Abiy Ahmed, na sua publicação nas redes sociais onde informa esta sua decisão de ir para a frente de batalha, explica que o faz por entender ter chegado o "momento de liderar pelo martírio".
Para já, as exigências dos lideres rebeldes passam pelo levantamento do cerco militar das forças leais a Adis Abeba na região de Tigray, onde há quase um ano não entra nem sai ninguém, especialmente ONG e agências da ONU, sendo ainda de sublinhar que não existem relatos de jornalistas independentes.
Apenas alguns elementos ligados a organizações humanitárias locais têm feito descrições tenebrosas do que se passa nesta região, com destaque para a sua martirizada capital, Mekele, com cerca de 350 mil pessoas, normalmente, mas com um número substancialmente maior agora.
Em busca de um cessar-fogo
Com o desenrolar deste conflito, um dos mais graves em muitos anos na sub-região, os esforços para garantir corredores humanitários têm sido infrutíferos e um cessar-fogo mais abrangente, praticamente impossível, embora as Nações Unidas e a União Africano mantenham esse esforço em contínuo.
Esse esforço tem sido, no entanto, dificultado pelas palavras do primeiro-ministro deste o primeiro tiro, diminuindo a importância da TPLF, que conta com o apoo evidente dos mais de 6 milhões de habitantes da região, garantindo repetidamente que a revolta seria esmagada sem contemplações mas que, com o passar do tempo, tal parece estar cada vez mais longe de ser possível.
Também os Estados Unidos da América estão a envidar esforços para aproveitar aquilo que o enviado especial da Casa Branca ao país chama de "pequena mas real janela de oportunidade" para conseguir acalmar os ânimos e dar uma possibilidade ao diálogo.
Jefrey Feltman, o enviado do Joe Biden para o Corno de África, explicou aos jornalistas, depois de ter estado nos últimos dias na Etiópia, onde se encontrou com Abiy Ahmed, com quem conversou sobre as possibilidades de dar uma oportunidade à paz neste país.
O diplomata norte-americano disse, citado pela Reuters, que aparentemente ambas as partes, a TPLF e o Governo de Ahmed só admitem como solução a sua vitória neste conflito, mas notou que crescem igualmente os sinais de que ambos admitem existir caminho para deixar as armas e ver no dialogo a solução.
Mas os EUA, disse ainda Feltman, estão preocupados com estes últimos passos, que aparentemente consolidam as posições de força, diluindo os frágeis progressos alcançados.
Nada parece poder travar os homens do norte
Este cenário, de aproximação das forças rebeles de Tigray à capital da Etiópia, surge depois de, há pouco mais de um mês, como o Novo Jornal noticiou aqui, as forças regulares etíopes terem lançado uma forte ofensiva desenhada para esmagar as forças rebeldes, coincidindo com a tomada de posse de Ahmed para o seu segundo mandato como primeiro-ministro.
Esta ofensiva, que não foi avançada pelo Governo mas sim pelos rebeldes, acabou por não ter o desfecho almejado, como o demonstra o reagrupamento e o avanço dos homens da TPLF rumo às portas de Adis Abeba.
Esta ofensiva desencadeada pelas forças leais a Abiy Ahmed, com apoio da Eritreia, visava acabar de uma vez por todas com o conflito que, além da tragédia humanitária, e com a registada perda de milhares de vidas, veio retirar brilho à carreira política do primeiro-ministro que tinha sido galardoado em 2019 com o Nobel da Paz por, precisamente, ter acabado com a guerra com a Eritreia que já durava há duas décadas.
Guerra essa, entre a Etiópia e a Eritreia, que foi alimentada pelo ódio ancestral entre o povo de Tigray, que, na altura, tinha os seus à frente do Governo em Adis Abeba, e os eritreus, e que, com a chegada de Ahmed ao poder, natural da região de Oromia, antiga Kaffa, perdeu o ódio étnico como combustível.
Porém, e ao que tudo indica, esse ódio étnico foi redireccionado para o povo de Tigray que, até à tomada de posse de Abyi Ahmed, há cinco anos, dominou o poder central por quase três décadas.
O responsável pelas relações externas da FPLT informava a 12 de Outubro que o Exército etíope lançara uma operação com centenas de milhares de homens, recrutando igualmente fora das forças regulares, alegadamente mercenários sudaneses e outros, focando o ataque na vizinha região de Amhara, onde estava então a linha da frente do conflito depois dos rebeldes terem, alegadamente, recuperado quase todo o território perdido em finais de 2020.
Como tem sido comum, estas informações, que dizem ainda estar a ocorrer ataques com aviação, drones ou artilharia pesada, não foramconfirmadas automaticamente por fontes independentes porque a região conta com poucos elementos de organizações externas, nomeadamente humanitárias, da ONU ou do Crescente Vermelho.
Todavia, citado pela agência de notícias norte-americana, Associated Press (AP), o porta-voz de Abyi Ahmed, questionado sobre esta ofensiva, disse apenas, laconicamente, que o Governo de Adis Abeba vai "continuar a enfrentar e neutralizar os ataques da FPLT seja em Amhara, seja noutra qualquer região do país".
Estes combates intensificavam-se quando Ahmed assumia o seu segundo mandato de cinco anos como primeiro-ministro, embora já tivessea perdido a áurea de pacifista que ganhou com o Nobel da Paz em 2019, e, com isso, uma vaga acentuada de críticas à sua acção da comunidade internacional.
Mas este segundo mandato, que saiu da vitória do seu Partido da Prosperidade (PP) nas eleições legislativas de Junho último, significa que o país ainda vê nele a solução para os problemas que enfrenta, desde logo esta guerra que ameaça tornar-se um novo longo conflito a envolver a Etiópia.
Para já, como a ONU tem documentado, este conflito já provocou a morte, directamente, ou pela fome que surgiu no seu rasto, a milhares de pessoas, estando ainda largas centenas de milhares à beira da morte em campos de refugiados onde a ajuda internacional não chega devido à guerra.
Isto, porque, depois de a FPLT ter, de faco, repelido as forças de Ahmed do seu território, o conflito descaiu para as vizinhas províncias de Amhara e Afar, com o Exército a manter uma espécie de bloqueio humanitário não oficial a Tigray, o que pode estar a sentenciar milhares de crianças, mulheres e idosos à morte...
O fio dos acontecimentos pode ser revisitado nos links colocados abaixo, nesta página.