Com os olhos semicerrados, por causa das luzes que iluminavam o seu muito esperado discurso aos congressistas e à Nação, mas também ao mundo, tal é o impacto que a acção externa dos EUA tem nos cinco continentes, o Presidente Joe Biden apontou para a embaixadora ucraniana em Washington, Oksana Markarova, presente nas laterais abertas a convidados especiais do Capitólio, e disse-lhe, comovido, repetindo duas vezes: "estamos e estaremos com os ucranianos o tempo que for necessário!".

Com a visão perturbada pelos holofotes, Biden, olhando para o lugar onde estava a diplomata ucraniana, falou-lhe do quanto aprecia a coragem dos ucranianos, garantindo-lhe que os "americanos" estão ao seu lado nesta batalha que é também pela "liberdade, dignidade e paz" na Europa e no mundo.

Se havia uma ideia, ínfima ainda, entre os analistas ocidentais de que estaria em curso uma espécie de descolamento dos EUA para o conflito no leste europeu perder vigor e ser assim mais fácil levá-lo para a mesa das negociações, essa foi terraplanada por este discurso de Biden, que comprometeu o a indústria de armamento e o poder de influência política norte-americanas com o sucesso de Kiev no esforço de guerra para expulsar os russos da Ucrânia, "durante o tempo que for necessário", meses ou anos, não é importante... porque Washington assumiu sem titubear a liderança contra os intentos do Kremlin no leste ucraniano.

E aproveitou ainda para se afastar da ideia do, ao que tudo indica, futuro adversário nas eleições de 2024, Donald Trump, insuflando a NATO com liderança e coesão ao invés do também seu antecessor, que procurou esvaziar a dimensão externa da política norte-americana, condenado ao colapso a antiga Aliança Atlântica, criada em 1949, com a Europa ocidental, para travar os ímpetos conquistadores da então União Soviética, que colapsou em 1990, abrindo espaço para a independência da Ucrânia, o agora "protégé" de Washington.

Biden apontou ainda o dedo ao Presidente da Federação Russa, Vladimir Putin, de quem disse ser hoje um novo teste, graças à invasão da Ucrânia, aos Estados Unidos e ao mundo, colocando em confronto valores e princípios que distinguem o bem do mal, contra o qual os EUA ergueram uma renovada coligação global apoiada na NATO para defender a Ucrânia, que encarnou os tais valores ocidentais face ao regresso de Moscovo como inimigo da democracia.

Depois de se mostrar aberto à colaboração com os republicanos, a oposição liderada por Donald Trump, que é agora maioria na Câmara dos Representantes, a câmara baixa do Congresso, que completa com o Senado, a câmara alta, pedindo-lhes que se juntem aos seus esforços para resolver os problemas internos, como a economia, mostrando-se optimista no futuro, porque, apesar da elevada inflação, gerada no decurso da guerra, que faz agora, a 24, um ano, os EUA estão com números historicamente bons na criação de emprego, e externamente, como é o caso do apoio bilionário a Kiev, para o qual os seu adversários têm vindo a dar sinais de não estarem disponíveis para prolongar por muito mais tempo esse apoio ilimitado, que ultrapassa os 50 mil milhões USD, Biden apontou baterias à China.

China, o inimigo-amigo

Ao fim de praticamente dois anos de permanente tensão com Pequim - que teve momentos de ameças relevantes -, por causa da proximidade dos chineses com a Rússia de Putin, por causa da disputada ilha rebelde de Taiwan, que o Presidente Xi Jinping já disse que vai reintegrar na China continental, a bem, de preferência, pela força, se necessário, e, não menos importante, por causa da ascensão imparável da China como potência global económica e militar, ameaçando a hegemonia norte-americana, Biden procurou reduzir essa tensão com um malabarismo diplomático que os analistas vêem como relevante.

Depois de mais um episódio quase burlesco por causa do balão chinês que sobrevoou os EUA e que mandou abater, por se tratar, disse, de uma aeronave espiã, que Pequim negou, dizendo tratar-se de um balão meteorológico que se desviou da rota inopinadamente, que levou o seu Secretário de Estado, Antony Blinken, a cancelar, à última da hora, uma visita a Pequim que já era vista como histórica, Joe Biden disse à Nação e ao mundo que, afinal, não quer alimentar essa tensão com os chineses, mas, ao invés, pretende com eles fortificar as trocas comerciais e alicerçar uma relação de paz, mesmo que baseada na competição económica e não no conflito.

Mas deixou um aviso sério a Pequim, dizendo, mesmo que tal situação não se coloque sequer como possível, que agora de imediato se a China ameaçar a soberania dos Estados Unidos, coisa que não tem antecedentes, sequer como possibilidade de acontecer...

E foi ainda mais claro, dizendo a Xi Jinping que os EUA não vão estancar o passo no momento de decidir por uma resposta inequívoca se a China beliscar a soberania norte-americana, como, de resto, fez na passada semana com o balão que sobrevoou os céus do seu país.

Voltou a mostrar que o caminho dos EUA é regressar a uma ideia de fortalecimento das suas forças armadas, especialmente no que toca a novas tecnologias, que disse que vai salvaguardar para que estas não possam ser usadas contra os interesses norte-americanos, num recado a Pequim, a quem os EUA acusam amiúde de roubar segredos tecnológicos e militares.

Mas, naquilo que é uma clara admissão e reconhecimento de que a China é o adversário último, Biden disse aos Congresso que os EUA estão agora na melhor posição em décadas de fazer frente à ascensão chinesa no mundo, competindo com eles ou com qualquer outra potência no mundo, embora deixe aberta a porta para a colaboração com os chineses desde que isso beneficie os EUA ou o mundo nos seus problemas que a Humanidade enfrenta, como as alterações climáticas e as catástrofes naturais a elas ligadas.

Sem, no entanto, deixar cair os braços da histórica "fanfarronice" americana, Joe Biden deixou um aviso bélico: "Quem aposta contra a América, aposta erradamente, porque nunca é uma aposta ganhadora ir contra os EUA", avisou, numa frase que encaixa em várias peças do "lego" global, sejam a China, na economia, seja a Rússia, na guerra da Ucrânia, ou aqueles que mostram estar menos alinhados com as posições norte-americanas, como dezenas de países africanos, ou ainda gigantes como a Índia, que se recusa a dar por finda a sua relação comercial e económica com a Rússia apesar da pressão nesse sentido de Washington, especialmente na crescente aquisição de crude a Moscovo.

Para o interior, disse... (segue-se o relato do restante discurso feito pela agência Lusa)

...num momento em que procura relançar a economia do país, Biden tentou acalmar a ansiedade económica que afeta uma parte significativa da população norte-americana, pedindo na terça-feira a colaboração da oposição.

"Aos meus amigos Republicanos, se pudemos trabalhar juntos no último Congresso, não há razão para não trabalharmos juntos neste novo Congresso. As pessoas enviaram-nos uma mensagem clara. Lutar por lutar, poder pelo poder, conflito pelo conflito, não nos leva a lugar nenhum", disse ainda Biden.

Foi a primeira vez que Biden se dirigiu ao Congresso desde que os Republicanos conquistaram o controlo da Câmara dos Representantes, a câmara baixa do parlamento dos Estados Unidos, nas intercalares do ano passado.

"Essa sempre foi a minha visão para o país. Restaurar a alma da nação, reconstruir a espinha dorsal da América: a classe média, unir o país. Fomos enviados aqui para terminar o trabalho", frisou o Presidente dos Estados Unidos da América (EUA).

Embora ainda não tenha anunciado oficialmente os seus planos para as presidenciais de 2024, Biden já afirmou que tenciona recandidatar-se e era esperado que adotasse um discurso de tom eleitoral no Estado da União.

Biden optou por dar especial destaque às conquistas económicas e legislativas que alcançou ao longo dos últimos dois anos e lançou o mesmo apelo várias vezes ao longo do discurso: "Vamos terminar o trabalho".

"Nos últimos dois anos, o meu Governo reduziu o défice em mais de 1,7 biliões de dólares [1,58 biliões de euros] - a maior redução de défice na história americana. No Governo anterior, o défice americano aumentou quatro anos consecutivos. Por causa desses números recorde, nenhum Presidente acrescentou mais à dívida nacional em quatro anos do que meu antecessor", disse Biden, referindo-se a Donald Trump.

"Quase 25% de toda a dívida nacional, uma dívida que levou 200 anos para ser acumulada, foi adicionada apenas por esse Governo", acrescentou, sendo apupado pelos Republicanos presentes no Congresso.

Apesar de ter defendido uma colaboração com os Republicanos, Biden ameaçou a oposição com vetos à legislação.

"Não se enganem. Se o Congresso aprovar uma proibição nacional do aborto, eu irei vetar. (...) Se tentarem fazer alguma coisa para aumentar o custo dos medicamentos prescritos, vou vetar", avisou.

O líder norte-americano dirigiu-se aos "lugares e pessoas que foram esquecidos", em referência à classe trabalhadora que tradicionalmente foi a base do Partido Democrata e que, nos últimos anos, se aproximou mais dos Republicanos e de Donald Trump, em particular.

"Enquanto estou aqui, criámos um recorde de 12 milhões de novos empregos - mais empregos criados em dois anos do que qualquer Presidente jamais criou em quatro anos", afirmou.

O ênfase de Biden nos seus feitos económicos ocorre num momento de fortes críticas por parte da oposição Republicana à sua política económica.

A Casa Branca e os Republicanos do Congresso estão actualmente a travar um debate sobre o aumento do tecto da dívida, sem saída imediata à vista, já que cada lado se isola na sua posição.

Os Republicanos exigiram que o Governo Democrata aprove cortes orçamentais em questões como saúde ou educação para que deem "luz verde" no Legislativo à suspensão do limite da dívida, que actualmente é de 31,4 biliões de dólares (cerca de 29 biliões de euros) e que foi atingido a 19 de janeiro.

Referindo-se ao ataque ao Capitólio perpetrado por apoiantes de Trump em janeiro de 2021, Biden saiu em defesa da Democracia norte-americana.

"Há dois anos, a nossa democracia enfrentou a sua maior ameaça desde a Guerra Civil. Hoje, embora lesada, a nossa democracia permanece inflexível e intacta", disse em tom firme.

Abordando temas fraturantes nos EUA, o Democrata aproveitou para defender o direito ao aborto, uma reforma abrangente da imigração, a proibição de acesso a armas semiautomáticas e criticou a violência policial, na presença da mãe e do padrasto de Tyre Nichols, um jovem negro que foi recentemente espancado mortalmente por agentes das forças de segurança norte-americanas.

"Não há palavras para descrever o desgosto e a dor de perder um filho. Mas imagine como é perder um filho às mãos da lei", disse Biden, num dos momentos mais emocionantes da noite, sendo aplaudido de pé.

Joe Biden terminou o discurso com uma mensagem de confiança: "Enquanto estou aqui, nunca estive tão optimista sobre o futuro da América. Só temos que nos lembrar quem somos. Somos os Estados Unidos da América e não há nada além da nossa capacidade se trabalharmos juntos. Que Deus vos abençoe a todos. Que Deus proteja as nossas tropas", concluiu.