A Síria deixou há uma semana, precisamente, de ser a ditadura de Bashar al-Assad para passar a ser liderada por Abu al-Jawlani, um antigo líder da al qaeda e do estado islâmico no Iraque, a quem europeus, norte-americanos e turcos levaram ao cabeleireiro e ao alfaiate.

Depois de ocidentalizado no alfaiate e no barbeiro, Abu al-Jawlani (na foto) tem a tarefa hercúlea de mudar mentalidades, a sua, desde logo, mas também dos milhares de combatentes que liderou do noroeste da Síria até à capital, Damasco, para, em 10 dias, mudar o que 13 anos de "primavera árabe" não tinha conseguido.

Em 2011, a Síria, tal como outros países árabes, foi abalroada por uma revolução colorida que a história definiu como "primavera árabe", mas, ao contrário de países como o Egipto ou a Tunísia, o Presidente Assad, com a ajuda de russos e iranianos, resistiu... durante 13 anos.

Até que há uma semana foi obrigado a fugir para Moscovo com a sua família, deixando para trás um país afogado em dúvidas sobre o seu futuro, porque são poucos os que acreditam que al-Jawlani, apesar da barba aparada e camisa engomada, seja um democrata.

É já claro que os 15 mil, ou 50 mil, combatentes, dependendo das fontes, antigos jihadistas da al qaeda e do daesh (estado islâmico), que partiram de Idlib, a província síria no noroeste do país, junto à fronteira com a Turquia, para conquistar Damasco, estiveram a ser treinados e financiados por um grupo alargado de países que incluem o Qatar, a Turquia, os EUA e Israel.

O resultado desse investimento é já claro, com Israel a avançar sem oposição para ocupar o que lhe faltava anexar dos Montes Golan, com os norte-americanos a alargar a sua influência e presença no leste, dominando os campos petrolíferos, e a Turquia a ter "livre trânsito" no noroeste para concluir o seu trabalho de anulação das forças curdas independentistas e para devolver os 3 milhões de refugiados sírios que ainda estão no seu território.

A tudo isto, Abu al-Jawlani já disse que não estaria disposto a opor-se, alegando que a Síria não tem forças disponíveis para travar a invasão israelita a sul e turca a norte, ou ainda de expulsar norte-americanos a oeste...

Mas esta decisão aparenta abranger ainda a presença russa que, pelo menos tacitamente, está a ser "convidada" para manter as suas bases na região oeste mediterrânica de Latakia, onde possui uma importante base naval, em Tartus, e a base aérea de Khmeimim, não menos importante para a visibilidade geoestratégica de Moscovo no Médio Oriente.

Ora, uma das razões para que EUA e União Europeia terem apoiado esta "revolução" era, precisamente, reduzir o espaço de manobra russo nesta região estratégica e criar dificuldades extra a Moscovo com a guerra na Ucrânia, supondo, segundo vários analistas, que Vladimir Putin iria dividir a sua estrutura militar para socorrer o seu aliado Bashar al-Assad.

Não só a Rússia não enviou forças militares, apesar de se tratar de um gigantesco revés no Médio Oriente, como também o Irão optou por se desligar da Síria, mesmo que isso significasse perder o aceso terrestre ao Hezbollah, no Líbano...

Uma das grandes questões por responder nestes dias vertiginosos na Síria, além de saber se russos e iranianos foram mesmo surpreendidos, é perceber o porquê de Moscovo ter aceitado tão depressa e sem oposição que Assad deixaria de ser Presidente de um país até aqui fundamental para a sua presença geoestratégica no Médio Oriente e onde investiu biliões em equipamento e infra-estruturas militares.

Uma das razões, aparentemente, está agora a emergir do caos criado pela chegada dos homens de Jawlani a Damasco, que foi a decisão deste em avançar com mais cuidado para a região de Latakia, de forma a não incomodar a presença russa, o que é o mesmo que lhes dizer que podem ficar com a sua presença nesta nova Síria.

Apesar de a TASS, a agência oficial russa, noticiar que Latakia já está totalmente nas mãos dos homens de Jawlani, avança igualmente que as bases russas não foram incomodadas... o que, aparentemente, já estaria previamente negociado, porque, caso contrário, o risco de perdas volumosas para, além dos militares, navios e aviões russos, seria incompreensível.

O que não se sabe ainda é como vão os Estados Unidos e a União Europeia lidar com esta situação, se vão aceitar a presença dos russos ou se vão impor uma outra agenda para o "imobiliário" sírio a Abu al-Jawlani... agora que está claro que Moscovo não vai desviar forças para a Síria e enfraquecer assim a frente ucraniana.

Sobre o futuro da presença russa na Síria, incluindo as suas bases militares, o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, disse, citado pela CNN, que tudo será "resolvido pelo diálogo" mas que, até ao momento, esta segunda-feira, 16, "nada está decidido".

Para já, embora sejam conhecidos momentos de violência dos antigos jihadistas entre as minorias sírias cristãs, alauitas (origem do agora ex-Presidente Assad), ismaelitas e drusos, incluindo fuzilamentos sumários, a nota predominante é a moderação dos antigos... decapitadores do daesh e da al qaeda.

As questões às quais a comunidade internacional, não apenas a ONU, mas também as organizações de defesa dos Direitos Humanos, vai dar atenção, é a forma como a Turquia vai lidar com a questão da minoria independentista curda (o Curdistão abrange quatro países: Turquia, Síria, Irão e Iraque), sabendo-se que Ancara procura há décadas exterminar esta ameaça à sua soberania, e como vão reagir as bolsas de jihaistas do daesh que resistem no centro do país.

Ou ainda como vai Israel comportar-se nos territórios sírios que ocupou nestes dias, havendo mesmo fontes que afiançam que as forças de defesa israelitas (IDF) já estão a menos de 20 kms de Damasco, a capital Síria, alem de estarem há vários dias a bombardear dezenas de paióis do antigo exército de Assad, alegando que teme que estas armas, mais tarde, se voltem contra Israel...

Mas sabe-se que Telavive está a aproveitar este ruído gerado pela mudança de regime na Síria para continuar a devastação de Gaza, mantendo o ritmo da mortandade, elevando-se já a mais de 45 mil mortos entre a população palestiniana, a maioria crianças e mulheres, e a destruir os edifícios que restavam na Cidade de Gaza, aproveitando os olhares do mundo virados para leste.

E é igualmente claro que os vizinhos, como a Turquia, temem que os israelitas aproveitem ainda o momento para tornar a ocupação do sul da Síria definitivamente, especialmente nos Montes Golan, estratégicos anto pela localização e elevação, como enquanto origem de quase metade da água potável consumida em Israel.

O ministro turco dos Negócios Estrangeiros, Hakan Fidan, veio mesmo a público acusar Telavive de ter em marcha um plano antigo de multiplicar a presença de população israelita nos Montes Golan como justificação para a sua ocupação definitiva.

Fidan avisa ainda que esta situação põe em causa os esforços de estabilização que estão a ser feitos após a mudança de regime em Damasco.

Até ao momento, Washington e Bruxelas, que enviou a sua alta representante para os Negócios Estrangeiros, Kaja Kallas, a Damasco, não fizeram qualquer reparo à invasão israelita, apenas a ONU pediu que Telavive respeite a lei internacional e a Carta das Nações Unidas, tal como pede à Rússia no contexto da invasão da Ucrânia.

Assad fala a partir de Moscovo: "Não desisto de ver a Síria de novo independente"

Nas primeiras declarações desde a sua fuga da Síria, Bashar al-Assad, numa nota publicada na página da Presidência síria nas redes sociais, aparentemente ainda sob controlo do agora ex-Presidente, veio dizer que não queria abandonar o país.

Assad escreveu, citado pela Al Jazeera, ainda que a sua intenção era manter-se no país e a lutar mas foi no último minuto, a 08 de Dezembro, que optou por sair por não ter alternativa, tendo seguido para a base aérea russa quando já estava sob ataque de drones dos "terroristas que agora dominam o país".

Recusa a ideia de que tenha roubado ou prejudicado o país e considera que é "o guardião último do projecto nacional sírio".

E faz questão de dizer que continua a manter uma profunda ligação ao seu país e ao seu povo e que essa ligação "permanece inalterada" face à circunstância de o país estar "ocupado por terroristas".

Conclui a nota transcrita pela Al Jazeera sublinhando que não desiste de um ver "a Síria livre e independente" de novo.