Para o Governo do Presidente Félix Tshisekedi não há grandes dúvidas de que o Ruanda está por detrás do apoio logístico e financeiro dos guerrilheiros do Movimento 23 de Março (M23) que voltaram a atormentar o leste RDC nos últimos meses.
Depois de acusações graves trocadas entre Kinshasa e Kigali desde meados de 2021, embora este seja um conflito de baixa intensidade que se prolonga desde a década de 1990, sobre violações territoriais de uma e outra parte - o Ruanda tem fronteira com a RDC nas províncias do Kivu Norte e Kivu Sul - e da ocorrência de escaramuças fronteiriças ocasionais entre militares dos dois países, o surgimento do M23, um grupo de guerrilha que estava adormecido desde há quase uma década, levou o Governo congolês a agir acusando o Governo ruandês de estar por detrás da sua acção violenta no leste do país.
Esta mobilização geral, com manifestações de apoio em todas as grandes cidades da RDC, onde largos milhares de congoleses exigem acção ao Governo de Kinshasa directamente contra o Ruanda, que consideram o verdadeiro agressor, fazendo dos guerrilheiros do M23 a ferramenta da agressão, é uma escalada séria nesta disputa de argumentos entre Kinshasa e Kigali que pode, mais cedo ou mais tarde, empurrar os Grandes Lagos para a condição de palco de um conflito aberto que pode ter consequências devastadoras para toda a África Central.
Isto, porque dificilmente os países vizinhos, desde logo o Uganda, o Burundi, o Quénia, a RCA ou o Sudão, ou mesmo Angola, no sul, embora mais distante, poderão deixar de agir face a um eventual conflito declarado devido aos interesses geoestratégicos em causa e as afinidades geográficas, étnicas e culturais de um dos mais perigosos lugares no Planeta Terra pelo seu potencial desestabilizador.
As imagens transmitidas pelas cadeias de televisão internacionais não enganam. São às dezenas de milhar os jovens congoleses que se mobilizam para as fileiras das forças militarizadas da RDC, mostrando-se em formações de combate e com grande disponibilidade para o que for considerado necessário pelos lideres em Kinshasa, com um volume crescente de mobilizados desde que foi feito o apelo nesse sentido por Félix Tshisekedi.
Esse apelo, recorde-se, foi feito claramente com o sentido de "mobilizar os congoleses contra a agressão" do Ruanda através do M23, estando os primeiros voluntários já a chegar à região para integrar as fileiras das FARDC no leste do Congo.
Como travar esta caminhada para a guerra?
Como o Novo Jornal tem noticiado (ver links em baixo nesta página), são vários os países da sub-região que estão na linha da frente dos esforços para baixar as tensões e criar condições para que o palco da disputa passe do terreno para a mesa das negociações.
A partir de Angola, o Presidente João Lourenço, optou por vestir a camisa de "campeão da paz e da estabilidade em África" que lhe foi entregue pela União Africana, sendo ainda condição importante a liderança actual da Conferência Internacional da Região dos Grandes Lagos (CIRGL), com a realização de sucessivos encontros entre os protagonistas deste conflito, Félix Tshisekedi, ds RDC, e Paul Kagame, do Ruanda, assinando, nos últimos dois anos, vários acordos e roteiros para a paz, sendo o último passo dado nesse sentido a Cimeira Tripartida que juntou este fim-de-semana, em Luanda, os ministros dos Negócios Estrangeiros ruandês e congolês, como o homólogo angolano, Téte António, tendo insuflado o roteiro para a paz com renovada energia... Mas só nas próximas semanas se poderá observar resultados positivos, se estes existirem.
Na região, os países da África do Leste - Burundi, Quénia, Uganda, Ruanda e a Tanzânia -, reunidos na capital queniana, Nairobi, estabeleceram como condição para travar este conflito dar um passo além de eventuais acordos de paz, com o envio de forças militares de interposição, como já o fez o Quénia, e outros países se preparam para também o fazer, embora os vizinhos do sul e do oeste, como Angola ou a República do Congo, ou mesmo a Zâmbia, ainda não se tenham pronunciado sobre essa possibilidade.
Os últimos episódios
O Ruanda acusou na segunda-feira a RDC de ter violado o seu espaço aéreo com um voo efectuado por um avião de guerra Sukhoi 25, mas Kinshasa reconheceu o "erro" do piloto e garantiu que não era intenção atravessar a linha de fronteira, acabando por tirar carga "explosiva" a este episódio.
A rápida resposta de Kinshasa a negar intenção e a admitir que se tratou de um erro, levou a uma redução das probabilidades de escalada neste conflito de baixa intensidade mas prolongado, entre o Ruanda e a RDC.
Em comunicado, o Ruanda acusou a RDC de ter violado o seu espaço aéreo na segunda-feira através de um voo efectuado por um caça Sukhoi 25, um avião da década de 1970 usado no tempo da União Soviética para operações de apoio às unidades de infantaria no solo.
Kinshasa, depois de admitir este voo, garantiu que foi não-intencional e que o aparelho em questão não estava armado, tendo a entrada inadvertida no espaço aéreo do Ruanda ocorrido durante um voo regular de reconhecimento.
Tendo ainda o Governo de Félix Tshisekedi, sublinhado que da mesma forma que o Congo defende o seu território, respeita o território dos seus vizinhos.
Este episódio não mereceu qualquer resposta miliar por parte do Ruanda, embora o Sukhoi 25 congolês tenha mesmo estado perto da cidade e do aeroporto de Rubavu, no oeste ruandês, embora no comunicado emitido de seguida Kigali tenha considerado ter-se tratado de uma provocação.
Tentativas mais antigas de forçar a paz negociada
Depois, a 06 de Julho, o Presidente Tshisekedi e o Presidente Kagame, aceitaram encontrar-se em Luanda, a convite de João Lourenço, para uma Cimeira Tripartida, onde, sob os auspícios da Conferência Internacional da Região dos Grandes Lagos (CIRGL), foi assinado um documento norteador dos passos para alcançar a paz, embora seja hoje claro que entre os envolvidos, surgiram actos de contravapor para que esse objectivo fosse alcançado.
Já em Outubro, foi o Presidente francês, Emmanuel Macron, que conseguiu juntar os dois lideres regionais, Kagame e Tshisekedi, durante a Assembleia-Geral da ONU, em Nova Iorque, onde, novamente, os princípios norteadores de um cessar-fogo foram assumidos por ambos os Chefes de Estado, que inclua a diluição imediata do M23 das suas posições, mas, mais uma vez, como o comprovam os últimos acontecimentos, alguém torpedeou este processo internamente.
Face a este intenso mas infrutífero esforço diplomático, Tshisekedi lamentou que a paz não esteja a ser a opção primeira, sublinhando que da sua parte estão a ser feitos todos os esforços.
Recorde-se que o Governo ruandês desde o início deste conflito latente, por vezes, aberto, outras, mas sem que tenha ainda chegado à condição de guerra total, sempre negou quaisquer intenções de desestabilizar o leste congolês e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Vicent Birunda, disse, citado pela France 24, em Julho, que Kigali quer uma redução das tensões com a RDC, admitindo, todavia, que estas aumentam a cada dia que passa.
Mais, Vicent Birunda afirmou mesmo que o Ruanda "ripostará de imediato em caso de qualquer agressão a partir da RDC".
As razões de fundo para este conflito
O leste do Congo é uma das regiões mais ricas do mundo em recursos naturais estratégicos, desde logo o coltão e o cobalto, dois minerais incontornáveis para as novas industrias tecnológicas e aeronáutica de ponta, sem as quais toda a parafernália tecnológica de comunicações, como os simples smartphones, não existiria tal como a conhecemos, sem o coltão, e a indústria que exige a aplicação de baterias, como a dos automóveis eléctricos, seria algo muito distinto do que é hoje sem acesso ao cobalto, sendo ainda abundantes as denominadas terras raras, com igual uso nas novas tecnologias, o ouro ou os diamantes.
E a piorar o cenário, como combustível para esta fogueira, a RDC possui as maiores reservas do mundo de coltão e cobalto, mais de 80% de um e de outro, quase em exclusivo presentes no leste do país, sendo esta geografia geradora de grandes "apetites" pelas multinacionais do sector, que, segundo ONG"s internacionais de defesa dos Direitos Humanos, usam as guerrilhas para explorar sem controlo estas jazidas, afastar populações ou aterrorizar as forças do Estado que procuram chegar a estas "terras de ninguém" assoladas pela mais hedionda violência.
Mas também os vizinhos, como o Ruanda, desde sempre exploram estas riquezas de forma encapotada, porque, como chegou a ser denunciado publicamente por organizações internacionais, não existem depósitos de coltão no país mas este aparece como um dos grandes exportadores mundiais deste minério estratégico.
A par da questão dos recursos naturais congoleses nos Kivu Norte e Sul, existem ainda questões de natureza territorial com potencial incendiário na região, desde logo por razões étnicas, ou de sobrepopulação, sendo o Ruanda o que apresenta a maior densidade populacional na África continental, sendo apenas ultrapassado pelas Maurícias e Mayotte, pequenas ilhas francesas situadas entre Madagáscar e Moçambique, no Índico.
Este cenário conduz, desde logo, a uma situação em que o Ruanda, um país pequeno, hiperpovoado - mais de 400 pessoas por km2 -, mas um dos mais ricos e desenvolvidos em África do ponto de vista organizacional e económico, se vê fortemente tentado, segundo alguns analistas, a alargar a sua territorialidade para oeste, onde o leste congolês é hoje uma espécie de terra de ninguém, com fraca presença do Estado e dominado por guerrilhas e interesses obscuros ligados às suas riquezas naturais.
É de ter ainda em consideração que o Ruanda foi palco, em 1994, de um trágico episódio, conhecido como o genocídio ruandês, em que mais de 800 mil tutsis, a minoria étnica, foram massacrados com extrema violência, pela maioria Huto.
Este episódio histórico trágico levou a que largas centenas de milhares de ruandeses procurassem segurança na vizinha RDC, onde surgiram, nesse momento, algumas das guerrilhas mais activas, como a Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR) que vingou até hoje no leste congolês, sendo, juntamente com a ADF ugandesa, de génese islâmica, actualmente sob domínio do estado islâmico, e o M23, as mais sanguinárias.
Ver links em baixo nesta página para revisitar a cobertura do Novo Jornal à persistente crise no leste da RDC