Emmanuel Ramazani Shadary, o ex-ministro do Interior que Joseph Kabila escolheu para ser o candidato do regime, e que, apesar de não ser uma figura de proa da política congolesa, fez uma campanha agressiva e muito bem financiada, segundo analistas que acompanharam de perto o processo eleitoral congolês, introduziu a primeira "silaba" de anormalidade neste escrutínio que é considerado de alto risco, ao declarar-se vencedor logo após ter votado, na manhã de Domingo, no mesmo sítio que o seu mentor.
"Já ganhei. Sou o grande vencedor destas eleições e sou o Presidente a partir desta noite", disse o candidato de Kabila.
Esta declaração inusitada de Shadary provocou reacções imediatas dos outros candidatos, desde logo porque uma declaração de vitória nestas circunstâncias, a ser levada à letra, pressupõe informação antecipada só possível através de processos irregulares, como a fraude eleitoral.
Aos 58 anos, Ramazani Shadary, e um dos homens de confiança de Kabila, que está consigo praticamente desde que este chegou ao poder, em 2001, foi um dos cabos de serviço do regime contra as manifestações que ao longo dos últimos dois anos saíram para as ruas das cidades congolesas a exigirem a realização das eleições que aconteceram no Domingo, dois anos para além do calendário normal e constitucional.
Estas manifestações, originadas pela forma como Kabila foi, através de expedientes, protelando a ida às urnas, tiveram em Shadary um dos ordenantes, e serviram para permitir mais dois anos de poder a Kabila na RDC, um país assolado por graves epidemias de Ébola, como a que ocorre actualmente no leste, de cólera e conflitos dispersos gerados por guerrilhas antigas, desde o Grade Kasai, no centro-oeste, até aos tumultuosos Kivu Norte e Sul no leste.
Apesar de ter sido amiúde gozado pelos seus adversários, como uma espécie de fantoche de Kabila, designado para ser o garante da manutenção dos seus interesses políticos e económicos, Ramazani Shadary, segundo analistas congoleses, sabia bem ao que ia, até porque dificilmente o regime aceitaria levar um processo eleitoral até ao fim sem garantir a vitória do seu candidato.
Com os primeiros resultados indicativos aguardados para o próximo fim-de-semana, os próximos dias serão de chumbo na RDC, até porque não faltam acusações de graves irregularidades num escrutínio onde Kabila não deixou que observadores internacionais entrassem no Congo.
O CENCO, a Conferência Episcopal da RDC, a plataforma mais activa da igreja católica, que colocou largas centenas de observadores espalhados pelas 26 províncias do país, considerou, logo após o encerramento parcial das urnas - parcial porque em algumas zonas as eleições foram adiadas para Março por razões de segurança e sanitárias - que foram detectadas diversas irregularidades, as principais ligadas ao mau funcionamento das máquinas de votar.
Máquinas essas que são criticadas desde o início pelos restantes candidatos, entre os quais se destacam os dois principais adversários de Shadary e, um e outro, igualmente convictos de que a vitória está ao seu alcance, como é o caso de Martin Fayulu, o candidato que representa os dois pesos-pesados da política congolesa - Jean-Pierre Bemba e Moise Katumbi - que o regime de Kabila impediu de concorrerem através de expedientes legais considerados perversos pelos próprios, mas também por organizações internacionais ligadas à defesa da democracia.
Fayulu, um desconhecido - se comparado com os seus mentores -, de 62 anos, e antigo homem forte das petrolíferas norte-americanas na RDC, segundo relatos das agências internacionais, fez uma campanha agressiva e também com forte suporte financeiro, que lhe permitiu ganhar dimensão pública e colocar-se na primeira linha dos favoritos nas sondagens, muito graças ao prestígio de Bemba, um antigo "senhor da guerra" e Senador, que foi vice-Presidente de Kabila e candidato derrotado em 2003, e o milionário Katumbi, antigo governador do Katanga e activo opositor a Kabila nos últimos anos.
O homem dos "grandes" nesta corrida, nas primeiras declarações após ter votado, foi ligeiramente menos impactante, preferindo sublinhar que "chega ao fim a ditadura de 18 anos de Kabila" e que a RDC vai "a partir de agora respirar melhor" sem a "arbitrariedade" do "regime que agora se extingue".
Fayulu começou por ser também o candidato de Félix Tshisekedi, filho do histórico e maior opositor de Kabila, Etienne Tshisekedi, mas este, à última da hora, saltou da carruagem onde estavam Moise Katumbi e Jeam-Pierre Bemba, para perseguir uma candidatura própria, apoiado por Vital Kamerhe, antigo Presidente da Assembleia Nacional.
Félix, que também afirmou a sua convicção numa vitória, dizendo que "a vitória está garantida", é claramente um dos principais concorrentes e será dele uma boa parte da responsabilidade para garantir que estas eleições, como sucedeu com todas as outras desde 1960, ano da independência do Congo-Belga, não resvalemm para uma insuportável, nas actuais circunstâncias regionais e mundiais, violência generalizada, porque é ele o sucessor e herdeiro directo do poder de mobilização e influência das ruas do seu pai, à frente da UDPS, a principal força da oposição representada no Parlamento.
Aos 55 anos, Féliz Tshisekedi tem nesta corrida eleitoral o palco maior para derrotar o seu grande "inimigo", Kabila, quando os resultados forem divulgados dentro de uma semana, cumprindo - se assim suceder - a vontade do seu pai, Etienne, que, alias, foi o grande motivo aludido para abandonar o barco nas negociações com os outros candidatos tidas em Genebra, na Suíça.
Incerteza, sim, tensão, sim, perigo, sim
Estas eleições estão a ser acompanhadas ao minuto pelas grandes chancelarias da Europa, nos EUA e em África, sem esquecer as Nações Unidas, que têm neste país a mais dispendiosa missão em todo o mundo, a MONUSCO, e sobre as quais o seu Secretário-Geral, António Guterres, foi tecendo múltiplos comentários e pedidos de calma aos candidatos e às forças políticas envolvidas.
Até porque, e essa é a grande "fogueira" que alimenta todos os receios, a RDC, antigo Zaire, tem uma história repleta de episódios de violência e guerras originadas por processos eleitorais defeituosos, a ponto de não ter ainda conhecido, desde 1960, uma única transição política pacífica.
Embora, mesmo que não ocorram novos episódios de violência, dificilmente se poderá dizer que estas serão eleições historicamente pacíficas, porque, recorde-se, durante as manifestações - que começaram em 2015 - a exigir eleições e a saída do poder de Kabila, que terminou o seu segundo e último mandato consecutivo permitido pela Constituição em Dezembro de 2016, morreram centenas de pessoas e milhares foram detidas.
As mesmas pessoas que ontem foram em massa às urnas para mudar o destino da RDC, apesar de se terem deparado com muitas dificuldades para votar, logo à partida, por causa da chuva intensa que se manteve o dia inteiro, mas principalmente porque as máquinas de votar mostraram a sua inoperacionalidade, tendo as televisões, sites, jornais e agências internacionais insistido em descrever situações onde apenas uma ou duas destas máquinas funcionaram em locais onde estavam instaladas em grande número.
Por essa razão, foram relatadas longas esperas para votar,, por vezes mais de cinco horas em longas filas, que, depois, não garantiram que as pessoas votaram em quem efectivamente queriam votar devido à complexidade do sistema informático.
A par disso, foram múltiplos os casos de relatos de eleitores que não conseguiram encontrar o seu nome nas listas afixadas nas assembleias de voto.
Sendo apenas a uma volta, no próximo dia 06 de Janeiro, deverá ser conhecido o próximo Presidente da República da RDC, pondo fim a uma governação de 18 anos de Joseph Kabila, nos quais não foi capaz de, apesar dos imensos recursos naturais, retirar a RDC e os seus cerca de 80 milhões de habitantes, da lista dos mais miseráveis de África.