No meio da pantalha mediática onde por cada jornal e televisão há uma versão do que pode ser o conteúdo do "plano" de Zelensky, e onde a discussão parecia ter congelado neste tópico, eis que em Moscovo, o chefe do Kremlin voltou a dar novo ímpeto à estória quando parecia que que tudo estava claro e, como sempre sucede em Hollywood, haveria um happy ending.

Numa reunião do Conselho de Segurança da Rússia, Vladimir Putin resolveu partilhar o foco mediático global de Nova Iorque, onde decorre a 79ª Assembleia-Geral da ONU, na qual o Presidente ucraniano procura recuperar a atenção do mundo para a sua causa, anunciado uma nova alteração substancial na doutrina que rege as condições de uso das armas nucleares do país.

E a grande alteração parece ser uma resposta directa ao que, embora ainda não seja oficial, parece ser o tronco principal do plano com que Zelensky pretende derrotar os russos na guerra, que é envolver os países da NATO directamente no conflito, seja, numa primeira etapa, com o uso dos seus misseis de longo alcance para infligir danos no profundidade russa, seja, depois, com a intervenção directa no terreno de tropas ocidentais.

O que vai fazer Biden?

O que, se tal vier a suceder, como muitos analistas pró-ucranianos esperam que possa suceder após a reunião desta sexta-feira entre Zelensky e Biden, na Casa Branca, com a autorização dos EUA para que os seus misseis balísticos ATACMS possam voar em direcção a Moscovo, a Rússia passa a responder sem mediação com os seus sistemas de defesa nucleares.

Ou seja, se até aqui a Rússia se limitava a poder, de acordo com a sua doutrina, a usar as armas nucleares em caso de ameaça existencial clara, seja por uso de ataques nucleares ou convencionais, mas de tal modo robustos que poderiam perigar a existência da Federação, agora essa resposta estratégica passa a estar acessível em caso de ataque convencional normal mas com empenho directo ou indirecto de países com armas nucleares nos seus arsenais.

Este é, de longe, como nota o britânico e pró-ucraniano The Guardian, o aviso mais sério feito pelo Kremlin aos países ocidentais que estão a analisar a possibilidade de autorizarem a Ucrânia a usar as suas armas, que são os EUA, o Reino Unido e a França - todos potências nucleares - para atacarem alvos em profundidade do território da Federação Russa.

Alias, Putin já tinha elevado o tom dos avisos para um patamar que muitos analistas estimavam ser mais que suficiente para em Washington, Paris e Londres se pensar duas vezes antes de dar a Zelensky o que ele quer há largos meses...

Mas tal não parece ter sido suficiente, porque, se em Washington Joe Biden e em Paris Emmanuel Macron ainda não se decidiram, mostrando terem dúvidas, em Londres, o primeiro-ministro Keir Starmer parece ter já assumido que é o mais férreo falcão de guerra ocidental e já disse que dará essa autorização, se os EUA também alinharem.

Alguns dos mais influentes media norte-americanos, como The New York Times ou o Politico, além da Bloomberg, têm avançado que existem dúvidas sérias no Pentagono sobre essa autorização, agressivamente desaconselhando-a mesmo, mas na Casa Branca a ideia parece ser diferente.

O que deixa, como nas boas séries televisivas, para o fim saber-se quem é que, afinal, vai ter a última palavra, se os sensatos militares do Pentagono, encabeçados pelo secretário da Defesa Lloyd Austin, se os amantes da guerra da Casa Branca, onde Joe Biden, claramente debilitado na sua saúde, poderá ter dificuldades em travar a impetuosidade belicista de elementos como o chefe da diplomacia Antony Blinken ou o conselheiro para a segurança Jack Sullivan.

Os desejos de Zelensky...

Mas, para já, o que parece estar a ser mais apetecível por parte dos media é saber efectivamente o que está no já famoso "Plano de Vitória" de Zelensky, e se este tem mesmo alguma novidade ou se é, como avançou na quarta-feira, 25, a Bloomberg, "uma mera lista de desejos" do Presidente ucraniano sem "qualquer surpresa" e sem forma de dar outro caminho à inexorável derrota de Kiev no campo de batalha.

Ou se é, como nota John Mearsheimer, professor da Universidade de Chicago e uma autoridade mundial em política e segurança internacional, a derradeira possibilidade de Zelensky garantir a sua própria segurança no pós conflito ao mesmo tempo que consegue novos compromissos em apoio ocidental que lhe permitam aguentar mais alguns meses o conflito com a Rússia.

O que só pode suceder com uma recuperação da dinâmica que existiu efectivamente entre 2022 e 2023, quando a Kiev chegavam diariamente rios de apoio militar e financeiro dos EUA e da União Europeia (NATO), o que agora nem de perto nem de longe sucede, com, sendo isso o pior para Kiev, um crescente aumento dos que discordam desse apoio à Ucrânia das sociedades ocidentais devido aos efeitos colaterais nas economias...

A favor de Zelensky, sendo essa a sua última cartada, que só poderá jogar mesmo antes do seu último suspiro político, está poder cobrar a Joe Biden e aos aliados europeus o facto de em Março/Abril de 2022, logo após o início da invasão russa, estar em avançadas negociações de paz com Moscovo e o então primeiro-ministro britânico, o histriónico Boris Johnson, ter ido a Kiev obriga-lo a abandonar a mesa das conversas que decorriam em Istambul, mediadas pelo Presidente turco Recep Erdogan.

O que Zelensky fez de imediato, deixando mesmo para trás um "draft" assinado com as condições para o cessar-fogo e o acordo definitivo de paz, por troca com as promessas de Boris Johnson, respaldado em Washington, de que teria todo o dinheiro e todas as armas necessárias para derrotar a Rússia "até onde fosse preciso", como, de resto, depois, Biden e os lideres europeus repetiram à exaustão... até deixarem de o fazer já no final de 2023, apesar de, como lamentou o ministro ucraniano da Defesa, Rusten Umerov, o país depender "em mais de 80% do apoio ocidental".

Ora, face a isto, com o apoio em armas quase a zero e o dinheiro a cair a conta-gotas , com cada vez mais vozes ocidentais a pedir que seja começadas negociações, sendo os melhores exemplos, além do húngaro Viktor Orban, e do eslovaco Robert Fico, o chanceler alemão Olaf Scholz e o Presidente checo Petr Pavel, Volodymyr Zelensky ou fica exposto ao risco de perder a guerra e ser alvo de um golpe de Estado, militar ou não, ou passa à chantagem ao ocidente de divulgar os termos dos acordos que fez para corresponder ao pedido de Boris Johnson de abandonar as negociações com os russos.

O que, diga-se, está mais perto de ser obrigado a fazer do que gostaria, porque, entre as alterações à doutrina nuclear russa, uma das suas exigências, que é usar as armas do ocidente para chegar dentro da profundidade da Federação, ficas coberta, que é Moscovo empregar esses sistemas atómicos tácticos de imediato quando atacado ou, ainda mais sério, se "existirem informações sólidas de que um ataque está em preparação ", mesmo que seja com "armas convencionais fornecidas por países que sejam potências nucleares".

O Armagedão prêt-à-porter

O que Putin disse em Moscovo ao seus conselheiros de segurança nacional foi que "se uma potência nuclear ajudar outro país a atacar a Rússia, isso será considerado participação directa na agressão", o que não podia ser mais óbvio enquanto ameaça aos países ocidentais que se preparam para autorizar Kiev a usar os seus misseis de longo alcance.

Avisando que estas alterações foram demoradamente pensadas, alertou, citado por The Guardian, para a "nova dinâmica militar e política no mundo", o que obriga Moscovo a "ter esta nova realidade em consideração, incluindo novas ameaças militares e riscos emergentes para a Rússia e os seus aliados".

Já a russa RT avança que Putin está consciente de que a tríade nuclear (Aviões, submarinos e plataformas terrestres) é a "mais importante garantia de segurança da Rússia e dos seus cidadãos, e um instrumento para a manutenção da paridade estratégica e balanço de poder no mundo de hoje".

Nesta alteração à doutrina nuclear russas, a RT diz ainda que a mais relevante alteração passa pela nova configuração das ameaças e do alargamento da segurança que estas armas permitem aos aliados da Rússia, como a Bielorrússia.

E esse limite de segurança contino neste mapa de acção que é a doutrina nuclear russa viu agora reduzida, e muito, a espessura das exigências para carregar no botão vermelho, como o site da televisão russa sublinha.

Fica ainda claro que Putin se refere precisamente aos países que são potências nucleares, EUA, Reino Unido e França, que estão na calha para autorizar os ucranianos a atacar a Rússia com misseis por si fornecidos.

Há, porém, um elemento perturbador nesta listagem de justificações para o emprego de armas atómicas pela Rússia, que é quando Vladimir Putin sublinha que estas podem ser accionadas perante um ataque substancial ao país, quer seja por misseis de longo alcance, com emprego massivo de drones, de aviação estratégica e táctica, misseis de cruzeiro ou hipersónicos...

A RT nota que a Ucrânia tem recorrido a ataque com abundante número de drones, o que qualifica este país para poder ser alvejado na resposta com uma arma nuclear... considerando Putin sempre que estes meios são de último recurso mas deixando claro que esse último recurso tem agora uma fronteira bem mais estreita e curta.