Desde as eleições intercalares de 2022 que quem manda na Câmara dos Representantes é o Partido Republicano, tendo eleito Kevin McCarthy para líder da "House", como é conhecida a Câmara Baixa do Congresso dos Estados Unidos da América, apenas ao fim de 11 exaustivas votações, o que permitiu perceber de imediato que não existia um consenso em torno da figura que iria ocupar o lugar que é, ao mesmo tempo, o 3º na linha de "sucessão" no poder máximo norte-americano, a seguir ao Presidente e vice-Presidente.
Com uma ala radical no seio do Partido Republicano muito próxima do ex-Presidente Donald Trump, e, segundo indicam as sondagens, o mais provável candidato deste partido para disputar as eleições Presidenciais de Novembro de 2024 com Joe Biden, que já anunciou a sua intenção de voltar a concorrer pelos Democratas, apesar da sua idade avançada e cada vez mais notórios problemas de saúda física, esta destituição de McCarthy expõe uma ferida aberta na luta política quando se começa a sentir a efervescência da pré-campanha eleitoral.
A proposta de destituição de McCarthy partiu de um elemento dessa ala extremista republicana, Matt Gaetz, e teve lugar na terça-feira, sob justificação de que o então líder da Câmara tinha feito um acordo com os democratas para impedir uma crise de financiamento do Estado, o chamado "shutdown", por não votação do orçamento proposto pela Administração Biden.
Com o tal acordo que enfureceu os radicais do Partido Republicano, Joe Biden conseguiu manter o Estado a funcionar, evitando a ruptura por mais 45 dias, embora tenha cedido na questão do pacote de 24 mil milhões USD que prometera à Ucrânia, de forma a que este país pudesse manter o esforço de guerra contra a Rússia, por exigência da oposição liderada por McCarthy, embora esse assunto tenha ficado em "stand by" para ser resolvido de outra forma e com a alegada colaboração do agora deposto lider da Câmara dos Representantes.
Aparentemente o que os homens de Donald Trump queriam era gerar uma crise financeira séria, de forma a expor as fragilidades da gestão democrata dos EUA, mas o que acabou por suceder foi acrescentar mais um obstáculo no apoio norte-americano a Kiev, o que, de resto, também está alinhado com as ideias do antigo Presidente, que já disse que assim que voltar à Casa Branca acaba com o apoio e cooperação militar com todos os países estrangeiros, numa clara mensagem para os ucranianos.
Havia uma dúvida em cima da mesa que pode voltar a baralhar todo este contexto, gerada por uma declaração do Presidente Biden onde este diz que estava à espera que McCarthy cumprisse a sua palavra de forma a poder ser possível manter o apoio à Ucrânia, o que representa duas coisas: a primeira é que poderia haver um compartimento secreto no acordo que permitiu evitar o "shutdown"; e segundo, que, agora, com Kevin McCarthy fora do baralho, o fluxo ininterrupto de armas e dinheiro para Kiev vai ser não só mais longo, como também menos volumoso e mais difícil de obter.
A questão do apoio de Washington a Kiev tem uma importância que vai muito além das convicções de Joe Biden e Donald Trump, porque se o actual inquilino da Casa Branca usa esse apoio "até quando for preciso" como bandeira da sua solidariedade com a defesa do "mundo livre" versus as autocracias emblematizadas em Moscovo e Pequim, o segundo usa o "xcesso" de dinheiro gasto no "estrangeiro" para enfatizar os graves problemas económicos internos e acusar a actual Administração de estar mais preocupada com os ucranianos que com os "americanos".
Olhando para este problema em Washington a partir de Kiev, a questão é muito simples, como, de resto, o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, já o admitiu: sem o apoio ininterrupto dos EUA, os ucranianos vão deixar de poder continuar a combater as forças russas.
Depois de uma extenuante e mortífera contra-ofensiva que já vai além dos três meses sem que sejam visíveis resultados efectivos no terreno, apesar dos milhares de militares formados pelos países da NATO e das milhares de peças de artilharia, carros de combate e misseis de longo e médio alcance modernos fornecidos a Kiev pelos aliados ocidentais, a Ucrânia pode perder o fôlego vital, não na frente de combate mas em... Washington.
E são cada vez mais os analistas militares que sublinham a "secura" de equipamento miliar nos arsenais ocidentais para fornecer à Ucrânia se não for feito um investimento galáctico na produção de material militar, com destaque para as munições de 155 mm para as peças de artilharia que podem ficar a enferrujar no Inverno que se aproxima da frente de batalha.
Com esta destituição de McCarthy e com a abertura de um novo processo de eleição do novo "speaker" da "House", período durante o qual nada funciona e nenhuma decisão política estrutural pode ser tomada, fica em "stand by" a promessa da Casa Branca feita no dia anterior, na segunda-feira, 02, pela porta-voz de Joe Biden, Karine Jean-Pierre, de que o apoio a Kiev vai continuar inamovível...
Face a este cenário, as questões em cima da mesa são simples de fazer mas complexas de responder:
- O próximo líder Republicano da Câmara dos Representantes vai correr o risco de ajudar o democrata Joe Biden a manter o fluxo milionário para Kiev depois do que se passou com McCarthy?
- E os Democratas vão correr o risco de gerar novas e prolongadas crises, como o que pode suceder já dentro de 45 dias, quando voltar a ser colocado na "House" a possibilidade do "shutdown", para manter a palavra sobre o apoio a Kiev, quando já é claro que os temas da campanha eleitoral vão ser a depauperada economia dos EUA e o complexo caso da imigração ilegal oriunda da fronteira do México?
É que empano de fundo para toda esta crise norte-americana está o facto de Washington já ter despachado para Kiev 113 mil milhões de dólares em armas, apoio financeiro e ajuda humanitária, desde a invasão russa em Fevereiro do ano passado.
E não é de esperar que os aliados europeus dos EUA substituam este fluxo de dinheiro e armas, até porque os problemas políticos causados pelo apoio ilimitado à Ucrânia são igualmente pesados em países como a Alemanha, na Polónia, na República Checa ou na Eslováquia, para dar o exemplo de alguns dos principais municiadores do apoio europeu a Kiev.
Alias, isso fica bem claro com a vitória do Smer, de Robert Fico, na Eslováquia, no passado fim-de-semana, um claro defensor do fim do apoio militar à Ucrânia, ou nas sondagens na Alemanha, onde o SPD do chanceler Olaf Scholz está a esfumar-se nas intenções de voto, ficando já atrás da CDU e da extrema-direita nazi da AfD. Isto, além da crescente vaga de manifestações populares contra a guerra e a forma como a Europa está a alimentar o conflito no leste do continente.
Além disso, se os EUA já têm dificuldade em rapar o fundo ao tacho dos seus arsenais, na Europa Ocidental, á nem se vê o tacho, como têm alertado analistas e mesmo chefias militares tanto nacionais como da NATO, devido às gigantescas entregas feitas à Ucrânia nos últimos 19 meses.