Antony Blinken e David Lammy não disseram ao que iam quando anunciaram a sua visita simultânea a Kiev, mas os analistas mais despertos para este conflito não duvidam de que se trata de uma visita com conteúdo e que este pode muito bem ser a escalada na guerra.

Em causa estará, como entende o analista britânico com posições tendencialmente pró-russas Alexander Mercouris, mas uma das pessoas que mais informação recolheu ao longo desta guerra, a autorização de Washington e Londres para Kiev usar os seus misseis de longo alcance em ataques a território russo em profundidade.

A ajudar esta lógica, Mercouris nota no seu programa diário nas redes sociais, que os media norte-americanos e britânicos têm investido fortemente nas últimas horas na divulgação de notícias da entrega pelo Irão de misseis balísticos a Moscovo que Teerão nega e Moscovo refuta.

Mas essas notícias são relevantes porque, mesmo que não se confirmem, permitem acomodar melhor a reviravolta da posição até aqui sustentada pelos dois países de que permitir o uso dos norte-americanos ATACMS e dos britânicos Storm Shadow para alvejar a Rússia além do campo de batalha de proximidade seria escalar perigosamente este conflito, negando por isso a autorização peresistentemente exigida pelo Presidente Zelensky.

Blinken e Lammy deverão, assim, anunciar em Kiev a autorização dos governos em Washington e Londres para o uso indiscriminado dos misseis balísticos de longo alcance no ataque a alvos na profundidade do território russo, como infra-estruturas energéticas ou, entre outros, bases aéreas.

O que seria uma perigosa escalada porque, como pode ser revisitado nesta notícia do Novo Jornal, o Presidente russo, Vladimir Putin, sobre essa possibilidade, fez notar que não só deixaria de haver limites para a resposta russa.

Resposta essa que incluiria ataques directos sobre os territórios dos países fornecedores dessas armas a Kiev e o recurso a armas nucleares tácticas se esses sofisticados misseis norte-americanos forem usados para atacar alvos considerados em Moscovo de interesse existencial para a Federação Russa.

Mas não apenas isso, como o Novo Jornal também lembra aqui, Putin deixou em aberto que, nesse cenário, a Rússia poderia fornecer dos seus misseis mais sofisticados a países e organizações adversárias dos EUA e do Reino Unido, ou do Ocidente no general.

O que deixaria o mundo à beira do caos, como se pode perceber tentando criar um cenário em que organizações como os Houthis, do Iémen, ou as milícias xiitas do Iraque e da Síria, teriam acesso aos misseis balísticos russos Iskander M, os anti-navio Onix, ou os hipersónicos Zircon ou Khinzal...

Nesse cenário, todas as bases e frotas navais ocidentais, especialmente as norte-americanas, ou os seus dois gigantescos porta-aviões estacionados na costa israelita, e no Médio Oriente/Mediterrâneo Oriental estariam em risco de iminente destruição.

É igualmente evidente que a ser essa a evolução, nunca o mundo esteve tão próximo do abismo nuclear, porque a partir desse momento, uma escalada para o patamar atómico seria quase imparável, como, de resto, os Presidente Biden e Putin admitiram logo no início do conflito da Ucrânia, em Fevereiro de 2022.

Mas pode ser outra a razão

... para a visita de Antony Blinken e David Lammy a Kiev.

Pode muito bem ser, mesmo que, para gerar cisalhamento comunicacional, esse passo da autorização dos misseis americanos e britânicos seja mesmo anunciado, com outra realidade a ser criada atrás do nevoeiro.

Uma amostra dessa possibilidade chegou já esta semana da Alemanha, com o chanceler Olaf Scholz a dizer publicamente, numa ousada e inesperada entrevista à TV pública alemã, que a paz deve ser alcançada imediatamente na Ucrânia e um acordo tem de ser conseguido o mais rápido possível.

De facto, o conflito russo/ucraniano, que já se aproxima dos três anos de duração, está a gerar um terramoto na economia europeia, especialmente nas suas locomotivas, a Alemanha, França e Itália, não sendo pouco o efeito das sanções à energia russa, que, sendo barata, permitia uma poderosa competitividade à indústria pesada alemã e europeia no geral.

Com o mundo cansado desta guerra, com dados económicos igualmente desastrosos no Reino Unido, país que estando fora da União Europeia, sofre semelhantes consequências, e com a economia norte-americana longe de estar em forma, provavelmente há decisões tomadas fora dos palcos mediáticos nos últimos meses que estarão agora a ser aplicadas.

Não apenas Blinken e Lammy a pressionar Kiev para ceder na sua retórica mais agressiva face a Moscovo, como em Moscovo, onde se prepara a relevante Cimeira dos BRICS para Outubro, os parceiros da Rússia nesta organização, especialmente a Índia, o Brasil e também a China, estão a forçar uma passagem secreta para a mesa das negociações sem passar pela exposição pública.

Se assim for, dificilmente este esforço será bem sucedido, porque, como recentemente afirmou Sergei Lavrov, ministro russo dos Negócios Estrangeiros, e figura incontornável do núcleo duro do Kremlin, os "parceiros" de Moscovo podem estar a ignorar as razões a montante da guerra na Ucrânia.

Que, Segundo Lavrov, entre outras, são que em 2014 a Ucrânia foi alvo de um golpe de Estado que teve, já demonstrado, o especial empenho dos EUA e da União Europeia, forçando a fuga do Presidente Viktor Yanukovych, pró-russo, mas que tinha sido eleito democraticamente, como a comunidade internacional reiterara na ocasião.

E que a esse golpe sucedeu-se uma série de ataques ao leste da Ucrânia, onde as populações russófilas se ergueram contra o novo poder golpista, então encabeçado pelo Presidente Petro Poroshenko e, depois, em 2019, por Volodymyr Zelensky, além de que essas populações vira ser-lhes retirados todos os direitos, entre estes o mais destacado, que é o uso da língua russa.

Esse recado de Lavrov foi claramente para o Brasil e para a Índia, países que no seio dos BRICS têm manido uma postura equidistante neste conflito e desde sempre se manifestaram disponíveis para assumir a condição de negociadores.

Se Blinken e Lammy estão em Kiev para apenas permitir a escalada do conflito ou numa missão mais abrangente e preparatória para desenhar o mapa das futuras negociações de paz, isso ver-se-á nas próximas horas ou dias.

Para já, tanto Kiev como Moscovo estão firmes nas suas posições de sempre.

Zelensky quer os russos fora do seu território total e incondicionalmente, que Moscovo pague a reconstrução do país e os dirigentes russos julgados em tribunais internacionais.

E Putin quer os ucranianos fora dos territórios anexados pela Rússia, que é o que resta conquistar de Donetsk, Zaporizhia e Kherson, ainda Kiev fora da NATO, neutralidade com garantias internacionais, e a devolução dos direitos culturais e religiosos à população russófila que permanecer no resto da Ucrânia.

Mas o chefe do Kremlin quer ainda outra coisa.

Depois de as primeiras tentativas de negociação terem sido desmoronadas pela visita intempestiva do então primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, a Kiev, quando russos e ucranianos negociavam os termos da paz em Istambul, Turquia, logo após o início da invasão russa, sob os auspícios de Washington, Putin ficou a saber que de pouco ou nada vale falar com Zelensky sem antes ter garantias dos norte-americanos de que esse esforço vale a pena.

O que, em traços simples, quer dizer que quaisquer abordagens a negociações de paz, no Kremlin só serão consideradas de forma séria se houver uma indicação clara nesse sentido dos EUA, com a Casa Branca ou o Pentagono a autorizar Kiev a assinar um acordo de cessar-fogo ou de paz.