Ou nem teria começado... porque sem a garantia de "apoio ilimitado e até onde fosse preciso" de Joe Biden para derrotar a Rússia, Volodymyr Zelensky não teria abandonado as negociações de paz com os russos em Março de 2022.
Dias após a entrada dos blindados de Moscovo nas fronteiras ucranianas, Kiev e Moscovo sentaram-se à mesa em Minsk, na Bielorrússia, primeiro, e depois em Istambul, na Turquia, para negociar uma saída pacífica para o diferendo.
E quando estava tudo encaminhado para acabar com as hostilidades, o então primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, foi a Kiev obrigar o Presidente Zelensky a abandonar as negociações e continuar a guerra até "vergar as forças do Kremlin" a uma humilhante derrota.
Para isso, o histriónico primeiro-ministro do Reino Unido, respaldado pelos EUA, garantiu aos ucranianos "todo o apoio em dinheiro e armas até onde fosse preciso" para garantir a derrota dos russos e ainda a entrada facilitada na NATO e na União Europeia.
Proposta irrecusável?!
A proposta era demasiado tentadora para o regime de Volodymyr Zelensky recusar, porque a entrada na NATO e na União Europeia era, e é, o sonho comum a todos os ucranianos não russófilos e russófonos, que é o mesmo que dizer, aos ucranianos do oeste do Rio Dniepre, que divide o país quase a meio.
Precisamente a parte da geografia ucraniana mais distante do campo de batalha que se situa totalmente no leste e sudeste da Ucrânia, região que, quase na sua totalidade, a Rússia anexou, após referendos, em 2014 (Crimeia) e 2022 (Donetsk, Lugansk, Zaporizhia e Kherson).
Quase três anos depois da invasão russa, a 24 de Fevereiro de 2022, a guerra não podia estar a correr pior para os ucranianos, com a redução abrupta do apoio ocidental, especialmente dos EUA, mas também dos aliados europeus, cujo caudal de armas e dinheiro é hoje irrisório em oposição às necessidades e, ainda mais relevantes, ao prometido pelos países da NATO.
Depois de falhar totalmente o "Plano de Vitória" de Zelensky, que tinha como objectivo quase único a entrada da NATO na guerra contra a Rússia (ver links em baixo), em Kiev repete-se à exaustão o pedido de mais armas e mais dinheiro porque sem isso, a derrota perante Moscovo é inevitável.
Muitos analistas notam que o colapso da capacidade de resistência ucraniana está por um fio, e que a velocidade a que os russos avançam sobre as posições ucranianas no Donbass e em Zaporizhia é sinal disso mesmo.
A pior das notícias
E a derrota da candidata democrata, Kamala Harris, nas eleições norte-americanas desta terça-feira, 05, foi a pior das notícias que Volodymyr Zelensky poderia ouvir, não apenas porque a democrata e actual vice-Presidente de Joe Biden se tinha comprometido a manter o apoio a Kiev, mas porque foi ela que apoiou publicamente contra Donald Trump.
Zelensky ainda está a tentar minimizar os danos com a vitória de Trump vindo a público, num dos seus já banais vídeos, elogiar a fórmula do Presidente eleito para a paz, subvertendo as suas palavras a seu favor, dizendo que o próximo inquilino da Casa Branca, tal como ele, defende a força como meio de atingir a paz.
Isto, quando o que se sabe é que Donald Trump não se esquece que Zelensky apoiou a sua adversária, que não quer manter o apoio dos EUA à Ucrânia, que chamou ao Presidente ucraniano o "maior vendedor da história" e que quer acabar com a guerra em 24 horas".
Ora, face a esta realidade, Zelensky sabe que não vai poder contar com o apoio norte-americano e ainda que os europeus não possuem capacidade nem militar nem económica para manter o caudal mínimo necessário para evitar o colapso da resistência aos avanços russos.
O que deve fazer Zelensky?
E é com isso que Trump conta quando diz, e disse, que nem sequer precisa de assumir o cargo para a guerra na Ucrânia acabar, basta-lhe fazer saber que Zelensky tem mais a ganhar se começar já a planear uma saída negociada para o conflito.
Só que Trump ainda não é Presidente efectivo e Joe Biden, que ainda manda na Casa Branca, não pensa como ele, procurando enviar nestes pouco mais de dois meses todo o apoio que pode, segundo The Guardian, para Kiev.
E o que Zelensky ainda pode esperar de Washington são os milhões que restam do pacote de 61 mil milhões aprovado no Congresso há cerca de seis meses, que alguns analistas admitem ser já muito pouco, ou pouco em comparação com as gigantescas necessidades ucranianas.
Com estes milhões restantes, que devem rondar os 10 mil milhões, mas sem certezas absolutas porque o pacote total estava bastamente compartimentado em apoios directos e indirectos, segundo o jornal britânico, o Governo de Kiev deve começar a criar condições para lidar com o day after ao fim do apoio norte-americano.
Isto, porque, por exemplo, Zelensky terá de organizar eleições, que foram mantidas em suspenso nos últimos meses graças à Lei Marcial, o que mina a sua legitimidade, um factor negativo ainda mais evidente com a mudança de estratégia em Washington com a chegada de Trump ao poder.
Um Trump que será ainda um Presidente com domínio absoluto sobre o Congresso depois de os republicanos terem somado maiorias no Senado e na Câmara dos Representantes, podendo tomar todas as decisões sem oposição que lhe permitam manter a promessa de acabar com a guerra na Ucrânia nas primeiras 24 horas.
Trump e "o melhor vendedor"
E é um Trump totalmente contra o apoio dos EUA a Kiev, chamou mesmo "melhor vendedor de sempre" a Zelensky pelos milhões que levava no bolso sempre que foi a Washington, que vai agora mandar e gerir as relações com Kiev.
Isto, quando se sabe, e o próprio confirma, ao contrário de Biden, que é amigo de Vladimir Putin, o chefe do Kremlin, com quem mantém boas relações pessoais, sendo que diz o mesmo de Zelensky, o que condiciona a saída para o conflito a um processo negocial. Sob que moldes, é a grande questão.
A actual Administração Biden quer que os ucranianos cheguem a esse inevitável processo negocial "nas melhores condições possíveis", disse um alto funcionário norte-americano à Reuters, o que será tentado com a derradeira injecção de milhões USD para Kiev.
No entanto, como avança a russa RT, o grande volume de armas que Biden quer agora fazer chegar apressadamente a Kiev pode nunca chegar, porque se trata de uma operação demorada, que pode precisar de meses para estar concluída, e se Trump chegar ao poder antes desta estar concluída, nada o impede de a travar.
E deve ser isso precisamente que fará, porque, apesar de Putin e o seu porta-voz, Dmitri Peskov, ou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, insistirem que para Moscovo ser Trump ou Biden o Presidente dos EUA é igual, a verdade é bem diferente.
Claramente este era o discurso para evitar que uma ligação próxima entre Putin e Trump viesse a prejudicar o norte-americano na sua corrida eleitoral, porque o grande e incondicional aliado de Putin, o Presidente bielorrusso Alexander Lukashenko, foi o primeiro líder mundial a congratular Trump pela vitória, e com palavras fortemente elogiosas.
O Kremlin pode querer mais que o que Trump pode dar
Há, contudo, um problema sério para resolver que pode, no limite, levar a um arrefecimento da "amizade" entre Putin e Trump... que são as condições imutáveis do Kremlin para negociar com Kiev o fim das hostilidades.
Moscovo quer, e não parece estar disponível para alterar o guião, perante a vantagem na linha da frente, onde soma vitórias sobre vitórias, que Kiev retire, de imediato, todas as suas forças das regiões que agora considera suas, as cinco regiões anexadas entre 2014 e 2022, Crimeia Donetsk, Lugansk, Zaporizhia e Kherson.
Quer ainda que a Ucrânia, sob garantias sólidas internacionais, abdique da ideia de aderir à NATO, que respeite constitucionalmente os direitos dos cidadãos russófonos, a cultura e a religião russa no país, e que, por fim, sejam desmanteladas todas as organizações de cariz neonazi... o que no limite, e na perspectiva de Moscovo, pode ser mesmo o Governo de Zelensky.
Como vai Donald Trump lidar com este contexto, só com o correr dos dias se poderá saber.