Para o Presidente russo, que discursava no encerramento da edição deste ano do Club Valdai, um think thank criado em 2004, onde é costume aproveitar para enviar recados ao resto do mundo, a guerra na Ucrânia é fruto da vontade ocidental de manter uma hegemonia global que a maior parte do mundo já não quer nem tolera.
E deu o exemplo da Rússia que, após o fim da União Soviética, na década de 1990, procurou entrar na NATO, "porque os russos então pensavam que eram todos o mesmo", mas a resposta da organização miliar ocidental deixou Vladimir Putin sem dúvidas de que em Washington essa adesão era intolerável porque estava então como está hoje em causa uma disputa geoestratégica pela hegemonia global pelo ocidente.
Depois de explicar que "não foi Moscovo que apoiou o golpe de Estado em Kiev, em 2014", nem foram os russos que "bombardearam o povo do Donbass" durante quase uma década, a quem tem dito que foram defender, garantiu que também não foi a Federação Russa a iniciar a actual guerra na Ucrânia, apontando, assim, mais uma vez, o dedo aos norte-americanos e aos seus aliados europeus.
A questão do avanço das fronteiras da NATO para o limite da Federação Russa, como seria o caso da entrada da UCrânia nesta organização militar ocidental, tem sido considerado por Putin uma questão existencial para a Rússia, razão pela qual nunca permitirá que suceda mas estava na calha antes deste conflito no leste europeu.
"A paz duradoura só poderá ser estabelecida quando todos se sentirem seguros, que as suas opiniões sejam tidas em conta e respeitadas e que exista um equilíbrio no mundo, um mundo em que ninguém force o outro a viver e comportar-se como interessa ao poder hegemónico", disse.
O chefe do Kremlin acusou o ocidente de "investir fortemente" em transformar todos aqueles que não seguem acriticamente as suas orientações em "inimigos", exigindo que todos sigam as suas indicações de acordo com a ordem global baseada em regras, mas, sublinhou, quando se lhes pergunta que regras são essas, facilmente se percebe que são as suas regras e que estas servem para garantir a manutenção da hegemonia global.
Neste cenário, acrescentou, "quem se orienta pelos seus próprios interesses é visto como inimigo e combatido como tal", mas Putin disse também que o mudo está em transformação, que já não é igual ao que existia há 20 anos, quando começou o Club Valdai, fórum de reflexão sobre as grandes questões globais, e que "a ordem mundial imposta pelo ocidente está a encolher" aceleradamente.
Apontou como sólida a crescente deterioração dessa ordem ocidental e o crescente alargamento de outra ordem, proposta por Moscovo e Pequim, com a qual a Índia já disse concordar, tal como outros grandes países, porque assenta na parceria entre iguais e é estruturalmente multipolar, essencial para acabar com uma era em que os países ocidentais adquiriram a sua prosperidade "roubando os recursos do planeta" em latitudes onde essa prosperidade nunca chegou.
E aconselhou os lideres ocidentais a "repensarem o seu modo de pensar colonial porque essa era já terminou" e o mundo, na sua grande maioria, já não tolera essa mentalidade abusadora.
Assegurou que a Rússia "é capaz de contribuir grandemente para uma nova ordem mundial embora tenha advertido que essa disponibilidade chegou a ser confundida com obediência no passado.
"Eles (o ocidente) não querem ouvir a Rússia porque são demasiado arrogantes", acusou, acrescentando: "Nenhuma civilização deve pensar que é melhor que a outra".
E avisou: "A civilização russa não poderá ser dividida ou reduzida a um denominador comum". E a isto acrescentou que "a situação no futuro breve poderá mudar, a política interna dos países pode mudar após eleições e uma visão totalmente oposta à actual pode emergir".
Garantiu que "a Rússia defende a igualdade entre todos os países e que nenhum deve depender dos outros para tomar decisões", estando Moscovo "pronta para uma interacção construtiva com todos os países e para fortalecer a resistência a todos aqueles que pugnam por poderes ditatoriais.
Num claro ataque aos EUA, Putin disse que não custa nada aos norte-americanos "imprimirem dinheiro" como fizeram no período da Covid, quando criaram do nado 9 triliões de dólares, e distribuí-lo pelo mundo.
Esta perspectiva histórica de Vladimir Putin choca de frente com o olhar sobre o mundo por parte dos EUA e dos seus aliados, qua acusam Moscovo de ter iniciado a guerra na Ucrânia com a invasão deste país em Fevereiro de 2022, recusando uma perspectiva histórica sobre as raízes do conflito.
Washington e seus aliados, com suporte das Nações Unidas e da sua Carta, dizem que a Rússia está a desenvolver uma guerra de agressão contra Kiev e que esta só pode acabar com a saída das tropas do Kremlin da Ucrânia para fora das suas fronteiras reconhecidas em 1991, ano da sua independência da ex-URSS.