Antony Blinken e David Lammy chegaram à capital ucraniana na tarde de quarta-feira e, no preâmbulo das conversas oficiais com o seu homólogo ucraniano, Andrii Sybiga, que esta semana substituiu Dmitri Kuleba, cuja saída ainda ninguém percebeu muito bem, aproveitaram para criar o contexto de justificação para esse próximo passo...

O secretário de Estado norte-americano disse mesmo que em Moscovo não vale a pena qualquer tipo de surpresa porque foi a Rússia que começou esta escalada ao encomendar centenas de misseis balísticos ao Irão para usar na guerra da Ucrânia.

Tanto russos como iranianos negam que tal tenha acontecido, e mesmo nos EUA parece haver dúvidas, porque, logo na terça-feira surgiram notícias de que o Pentagono não confirmava o envio de misseis pelo Irão para a Rússia, mas, horas depois, o Departamento de Estado veio dizer que sim, que afinal chegou mesmo um carregamento de misseis iranianos a Moscovo.

Verdade ou não, ver-se-á nas próximas horas, dias ou semanas, com o fluir da guerra, mas certo e seguro é que isso está a ser usado por Londres e Washington para acomodar a decisão de permitir a Kiev usar os seus Storm Shadow e ATACMMS para atingir alvos na profundidade do território russo.

Com alcances entre os 300, os ATACMMS, e os 550 kms, os Storm Shadow, grande parte das bases aéreas russas usadas para atacar território ucraniano ficarão no radar das forças ucranianas.

E mesmo as cidades de Moscovo e São Petersburgo, se estas armas forem lançadas do limite do território ucraniano, ficam parcialmente dentro da área da sua abrangência, o que eleva o patamar de potencial resposta russa para além do convencional.

Porque ninguém leva a sério Medvedev?

O antigo Presidente da Rússia, ex-primeiro-ministro e actual vice-presidente do Conselho de Segurança da Federação Russa, Dmitri Medvedev, foi lesto em reagir a este nono cenário, repetindo as suas abrasivas ameaças de uso de armas nucleares hipersónicas para "afundar" o Reino Unido em resposta a esta escalada norte-americana e britânica.

Só que, como sempre, as palavras de Medvedev não são levadas a sério porque a isso leva a sua condição de fanfarrão de serviço, sendo useiro e vezeiro nas ameaças ao Ocidente de uso de armas nucleares pela Rússia como resposta à intensificação do apoio a Kiev.

Como na conhecida fábula de Esopo, Pedro e o Lobo, tantas vezes o alerta de lobo na cerca se revelou ser falsa que no dia em que o lobo estava mesmo a rondar as ovelhas, ninguém as foi salvar, também existe o risco de tantas vezes Medvedev gritar que as ogivas nucleares russas podem sair da "toca" que um dia esse risco é mesmo a sério e ninguém lhe presta atenção...

E não faltam razões para se levar a sério o "louco" Medvedev. Seja porque se trata de um antigo Presidente russo, que foi ainda primeiro-ministro e, actualmente, ocupa o cargo de vice-presidente do Conselho de Segurança, órgão consultivo de Vladimir Putin para as questões de segurança, mas essencialmente porque em nenhuma destes avisos foi desmentido pelo Kremlin, pelo próprio Presidente Putin ou que fosse pelo seu porta-voz Dmitri Peskov.

Ou seja, se o Kremlin não estivesse em sintonia com estas ameaças, naturalmente que se apressaria a desmenti-las porque o currículo e o actual cargo de Medvedev transforma essas mesmas ameaças em ameaças oficiais da Federação Russa.

Além disso, essas ameaças de ataque directo aos territórios do Reino Unido caso essa autorização de uso de armas de longo alcance por Kiev fosse dada, não saíram apenas da boca de Medvedev, o próprio Putin disse que esse cenário estaria em cima da mesa.

Indo mais longe, o Presidente russo, que também não está a ser levado a sério em Londres e Washington, sublinhou que, caso os ATACMMS e os Storm Shadow começassem a voar sobre o território russo em profundidade, nada poderia travar a disponibilização de misseis semelhantes por parte da Rússia às organizações inimigas destes países.

E não faltam exemplos da perigosidade de tal cenário, desde logo se Moscovo enviasse os seus Iskander M, ou pior, os seus misseis anti-navio Onix, para os rebeldes Houthis, do Iémen, ou mesmo para as milícias xiitas do Iraque e da Síria, deixando em polvorosa as forças navais norte-americanas e britânicas no Mediterrânio Oriental (onde estão para apoiar Israel), o trafego marítimo no Mar Vermelho, no Golfo de Adén... ou as dezenas de bases militares dos EUA e do Reino Unido em quase toda a extensão do Médio Oriente...

Binken diz que a culpa é dos russos

Nas suas declarações citadas pelos media a partir de Kiev, Antony Blinken, procurou ambientar o contexto para anunciar uma decisão que em tudo aparenta ter já sido tomada, aludindo a que os Estados Unidos "sempre ajustaram e adaptaram as suas decisões à realidade que têm pela frente".

Washington, adiantou Blinken, "ajusta as suas decisões conforme as necessidades surgem no campo de batalha e é isso que continuará a ser feito, à medida que a situação evolui", nomeadamente a escalada no conflito, "que é um dos factores sempre considerados", numa referência à ideia de que foi a Rússia que escalou primeiro com a encomenda dos misseis iranianos.

Sugerindo que os ataques russos na Ucrânia estão a aumentar, especialmente das suas infra-estruturas energéticas, bem como sobre as forças que defendem o país, Blinken deixam subentendido que os EUA não podem ficar indiferentes à chegada dos projecteis do Irão ao campo de batalha.

Por outro lado, o seu homólogo britânico, David Lammy, na mesma ocasião, citado por The Guardian, foi mais directo: "É o Putin que está a escalar o conflito com o carregamente que recebeu esta semana de misseis balísticos iranianos".

"Nós estamos a ver a evolução deste novo eixo Rússia-Irão-Coreia do Norte e pedimos à China para não se alinhar com este grupo de renegados", disse Lammy, numa cínica declaração que visa claramente gerar incómodo em Pequim.

Entretanto, ainda segundo The Guardian, Blinken e Lammy vão agora regressar aos seus países e reportar aos seus líderes, Joe Biden e Keir STarmer, o primeiro-ministro britânico, o que recolheram em Kiev.

E só então a luz verde para o uso destas armas nos ataques em profundidade na Federação Rússia, sendo de esperar que tal surja já esta sexta-feira quando se prevê que o Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky se encontre em Washington com Joe Biden.

A viagem mais importante

Todos os analistas admitem que esta deslocação de Zelensky aos EUA será a mais importante de todas as que fez desde o início da invasão russa, a 24 de Fevereiro de 2022.

Kiev já anunciou que há quatro pontos destacados na agenda que Zelensky levará a Washington para um conversa densa com Joe Biden e a sua equipa.

E, entre estes, existe a possibilidade de a questão do uso das armas de longo alcance nem ser a mais relevante.

Com a guerra a entrar numa fase de agonia para os ucranianos, claramente a perderem em todas as frentes, em cima da mesa no diálogo Biden-Zelensky estará seguramente o ucraniano escutar do amigo americano quais os limites para as cedências a Moscovo que não belisquem muito a "honra" de Washington.

O que é, na verdade, a mais importante de todas as questões neste momento, embora não se possa ignorar que, para Zelensky, está ainda no topo das prioridades proteger o seu futuro num cenário de pós-conflito e ainda obter garantias para reconstruir o país depois de quase três anos de guerra.

E uma das condições mais substantivas pode ser a promessa de Scholz de apressar o processo de adesão da Ucrânia à União Europeia, apesar de aí ser quase certo que os vizinhos, Polónia, Roménia, Hungria, e os bálticos, embora sejam fortes defensores da sua entrada na NATO, mostrem sérias resistências a ter Kiev sentado à mesa do orçamento de Bruxelas.

Isto, sabendo-se, como Scholz deixa claro, que o tempo corre contra os amigos ocidentais de Kiev, porque, à medida que os russos ganham terreno no Donbass e no sul, as condições negociais alteraram-se e nunca a favor da Ucrânia, como se começa a notar mesmo nos media ocidentais que apoiam calorosamente os ucranianos.

Um dos pontos cruciais está a acontecer actualmente, com o avanço russo em profundidade na direcção de Pokrovsk, uma grande cidade de Donetsk, e que se cair nas mãos dos russos, a Ucrânia deixa de ter na sua posse um ponto nevrálgico da sua logística de guerra.

Como se isso fosse pouco, assim que Povrosk cair, a Rússia fica praticamente com a até aqui capacidade logística que era da Ucrânia e quase sem barreiras defensivas até ao Rio Dniepre, o que seria o descalabro para Kiev... e, como sublinham vários analistas, o colapso da resistência ucraniana.

O cenário é ainda mais tempestuoso para Kiev depois de ficar claro que a incursão em território russo, em Kuersk, foi um fracasso e todos os objectivos falharam, com centenas de veículos destruídos e baixas avultadas, na ordem dos milhares de homens da suas forças mais capazes.

Nem conseguiram tomar a central nuclear de Kursk nem os russos caíram no engodo de retirarem forças do Donbass para proteger Kursk, fragilizando a sua capacidade de avanço rumo a Pokrovsk.

Também este cenário estará em cima da mesa quando Zelensky se sentar com Joe Biden e a sua equipa, depois de Washington ter recusado, mais uma vez, embora desta feita de forma mais ruidosa, o uso pelos ucranianos dos seus misseis de longo alcance para atacar em profundidade o território russo.

O que, a somar às declarações de Scholz (ver links em baixo nesta página), deixa Volodymyr Zelensky com duas cargas pesadas para carregar: os alemães não querem mais guerra e os americanos estão a sair de cena à velocidade mais acelerada que conseguem de forma a evitar danos colaterais na política interna, onde tudo ficará decidido nas eleições de Novembro próximo.