Quando a guerra se aproxima a grande velocidade dos dois anos de duração, a 24 de Fevereiro próximo, em Kiev a confiança numa vitória clara e inequívoca sobre as forças russas está claramente a decrescer, não porque as palavras do Presidente Zelensky o traduzam mas porque os media ocidentais já não escondem a vastidão de problemas que corroem a capacidade combativa ucraniana.

Nos últimos meses de 2023, especialmente nos Estados Unidos, os mais importantes media têm vindo a expor as fragilidades ucranianas, correspondendo isso a um esfumar oficial do apoio de Washington, longe que está dos primeiros tempos da guerra onde o apoio a Kiev seria "até onde for preciso" para "vergar a Rússia sobre os seus joelhos no campo de batalha", como dizia então, repetidamente, o Presidente Joe Biden e agora não vai mais longe que garantir "o apoio que for possível".

E a última peça noticiosa que destaca o desmoronamento da solidez da resposta ucraniana à invasão russa surgiu nas páginas de The Wall Street Journal, que é (foi?), curiosamente, o mais empenhado media norte-americano ao serviço da causa ucraniana, reflectindo o que há muito vários analistas ocidentais descrevem como o inevitável ocaso da capacidade de Kiev alcançar uma vitória nesta guerra.

Uma nova configuração para a guerra

Efectivamente, como notam alguns analistas, dentre estes Alexander Mercouris, um observador independente, britânico, que, embora exponha amiúde uma perspectiva de maior destaque aos feitos das forças russas, se tem imposto pelo rigor das suas análises, o conflito na Ucrânia, com o deslaçar do apoio norte-americano, pode estar a entrar numa nova configuração, muito mais perigosa e volátil.

Isto, porque, com a escassez de munições de artilharia de 155 mm, calibre NATO, e a evidente fragilidade dos sistemas antiaéreos ocidentais, Patriot, Iris-T ou NASAMS, face à capacidade hipersónica dos misseis russos Kinzhal, e do volume dos projecteis balísticos e drones, que extenuam essas defesas, Kiev pode contar em breve com novas remessas de misseis de longo alcance, como os Taurus, alemães, ou os Tomahawk norte-americanos, que tiveram um papel fulcral na invasão dos EUA ao Iraque ou os ataques à Sérvia, na década de 1990.

Se tal suceder, como reflecte ainda Alexander Mercouris, Kiev passa a dispor de uma capacidade para atingir alvos na profundidade russa, muito para lá das fronteiras pré-24 de Fevereiro de 2022, ou mesmo de 2014, antes da anexação da Crimeia, e não deixará de o fazer face ao iminente colapso da sua estrutura militar.

Como justificação para esta escalada, o uso de armas ocidentais para alvejar regiões russas em profundidade territorial além da área de conflito, está a ser usado o surgimento de notícias em alguns media europeus do recurso, por parte do Kremlin, a misseis balísticos comprados à Coreia do Norte, já denominado Kimiskander (glosa com o nome do Presidente norte-coreano, Kim Jong Un, porque estes são construídos com base no russo Iskander M, para atacar Kiev.

Crise em Kiev

Esta escalada é uma solução no curto prazo para as dificuldades em acelerado crescimento de Zelensky para resolver a falta de munições e sistemas de defesa antiaérea, destruídos pelos Kinzhal russos, embora em Kiev se repita de forma categórica que quase todos os projecteis russos, sejam eles drones, misseis balísticos, de cruzeiro ou hipersónicos, são abatidos, e ainda para "tapar" a crise de recrutamento que está a criar um atrito público entre o Presidente e o seu CEMGFA, general Valery Zaluzhny.

Com cada vez mais vídeos espalhados pelas redes sociais de ucranianos a procurarem deixar o país para evitarem a integração nas unidades militares, depois de Zelensky anunciar o recrutamento de mais 450 mil soldados em finais do ano passado, alargando o universo de captação às mulheres, homens até 65 anos, descendo ainda a idade dos mobilizáveis, com a criação de comandos para patrulhar as ruas em busca de recrutas à força, só uma escalada no conflito pode aliviar Kiev desta situação de sufoco.

Isto, porque, no essencial, a Administração Biden está sem dinheiro para municiar a Ucrânia desde que o Congresso, onde a oposição Republicana detém agora a maioria na Câmara dos Representantes, travou a aprovação de um pacote de 60 mil milhões USD para o efeito e o conflito entre Israel e Palestinianos em Gaza desviou claramente o foco das prioridades de Washington para o Médio Oriente.

Em situação de evidente distanciamento da guerra na Ucrânia, os EUA pretendem livrar-se igualmente de um compromisso de longo prazo, como é cada vez mais evidente pela mudança de direcção nos media mainstream norte-americanos que reflectem a posição da Casa Branca e do Pentagono, como The Washington Post e The Wall Street Journal, The New Yoir Times ou mesmo a CNN International, atapetando o compromisso inicial de apoio a Kiev "até onde for preciso" por um muito menos sólido "apoio que for possível", como referiu Joe Biden recentemente.

Resta a Volodymyr Zelensky o apoio dos seus aliados europeus, que ficaram com a herança de maior proximidade do compromisso férreo manifestado pelo então primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que irrompeu intempestivamente por Kiev para, em Março de 2022, destruir o processo negocial com os russos para acabar com a guerra, e que já tinha um draft assinado pelas partes, prometendo ao Presidente ucraniano todo o dinheiro e todas as armas necessárias para derrotar a Rússia no campo de batalha, sendo acompanhado nesse processo pela, agora em afastamento claro da "linha da frente" desse apoio sem limites, presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

Com a vida difícil e quando em Kiev cresce a dificuldade em gerir as elevadas baixas em meios humanos e equipamento, sendo igualmente pesadas do lado russo mas com mais capacidade de substituição para alimentar o esforço de guerra, Zelensky parece estar a tentar uma nova abordagem, que passa por fazer crescer o tom de ameaça - os misseis de longo alcance são parte desse discurso - ao mesmo tempo que veio dizer, pela primeira vez em quase dois anos, que a Rússia pode, afinal, integrar de novo o contexto da lei internacional.

Até a Rússia pode ser integrada no panorama da lei internacional, disse Zelensky numa conferência sobre o conflito e a Europa a decorrer na Suécia, sublinhando, todavia, que a sua agressão "pode ser derrotada", o que em si mesmo é também uma alteração discursiva ao que tem sido a sua linha, mais dura de inevitável derrota de Moscovo.

Nessa mesma circunstância, o Presidente ucraniano, dirigindo-se à plateia por videoconferência, Zelensky disse aos presentes que a Ucrânia só vai conseguir resistir e vencer a Rússia se os seus parceiros ocidentais mostrarem uma renovada solidariedade em várias formas, deixando claro que a mais importante é a do fornecimento de armas e que se estas não estão disponíveis de momento, devem ser produzidas através de um programa conjunto para o efeito.

Isto, porque, sem excepção, os países da Europa Ocidental já disseram publicamente que estão esgotadas ou muito próximo disso as capacidades de continuar a apoiar Kiev, porque os seus arsenais ficaram vazios, havendo mesmo problemas de segurança nacional em vários deles, como é o caso do Reino Unido, onde crescem críticas internas por estarem a ser esvaziados os seus stocks de munições ed de peças de artilharia, por exemplo.

Ao mesmo tempo, crescem os apelos, quase sempre conhecidos através de notícias nos media ocidentais e via fontes anónimas, para que Kiev aceite encetar conversações com Moscovo de forma a criar condições para um cessar-fogo e, posteriormente, um acordo de paz.

Por detrás desta nova postura ocidental está a crescente dificuldade para esbater a crise financeira, especialmente, a inflação e o desemprego, que os analistas admitem ter uma boa parte da sua justificação nas sanções gigantescas atiradas contra a Rússia, com destaque para o sector energético, combatendo a dependência do gás natural russo, barato, que permitia uma vantagem competitiva à indústria europeia, nomeadamente a alemã, o motor da Europa, e que se esfumou.

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.

O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.

A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, com destaque para o sector energético, do gás natural e petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 6,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.