Em confronto estão as forças leais ao general Abdel al-Burhan, que ficou no poder após um novo golpe de Estado de 2021, que anulou o processo de transição em curso desde 2019, à frente do Conselho Soberano, e as chamadas Forças de Apoio Rápido (RSF), antigas milícias comandadas pelo general Mohammed Dagalo, actualmente vice-chefe daquele órgão de transição, e em causa está a reorganização das Forças Armadas sudanesas, especialmente os moldes para encaixar os homens de Dagalo no Exército oficial.

No actual cenário, a situação pode ser resumida à luta feroz pelo poder entre os dois mais poderosos generais do Exército sudanês que em 2021 se puseram de acordo para interromper o processo de transição para a democracia após o derrube de al-Bashir, com um novo golpe de Estado, provavelmente agora em desacordo devido a interferências externas, sendo aceitável, segundo alguns observadores, que ambos estejam já a ser peões de um xadrez muito maior que o Sudão.

Com uma situação periclitante em permanência desde 2019, quando chegou ao fim o reinado absoluto de Omar al-Bashir, esta eclosão das hostilidades, que, segundo algumas fontes, já fez perto de 100 mortos e centenas de feridos, não é propriamente um cenário novo, nova é a razão que está por detrás dos combates ferozes que voltaram ao centro de Cartum, com a sede do Exército e as bases em redor da cidade, bem como o seu aeroporto internacional na mira das armas.

Com a comunidade internacional quase em uníssono a condenar esta vaga de violência mortífera na capital do Sudão, desde o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, que pediu o fim das hostilidades "imediatamente" e o regresso às negociações, aos EUA e à Federação Russa, ou a China.

Mas foi o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, quem deu o mote para a possibilidade de haver algo de estranho por detrás deste refluxo trágico em Cartum, sublinhando a existência de interesses não revelados a fomentar a violência.

E a dúvida rapidamente chegou às colunas de opinião de vários media internacionais, porque há apenas dois meses, o Governo militar de Cartum e a Rússia concluíram a revisão dos termos do acordo para a criação de uma base militar naval no Mar Negro, que será a primeira que Moscovo ergue em África e uma das poucas em todo o mundo, foram da Federação Russa e de algumas das antigas repúblicas da ex-União Soviética.

Porém, este acordo ficou pendente na sua concretização da conclusão do período de transição e da efectivação de um Governo civil no Sudão bem como, segundo noticiou na altura, em meados de Fevereiro, a Associated Press, a instalação de um Parlamento que o deve ratificar.

Sobre a possibilidade da existência de forças exteriores na génese nesta sublevação das RSF, embora não existam quaisquer acusações formais, apenas indicações de que os Estados Unidos admitem a sua existência, como o afirmou o chefe da diplomacia em Washington, alguns dados são já conhecidos, como o facto de, ainda segundo a norte-americana Associated Press, quando Cartum e Moscovo definiram os termos do acordo para a base russa no Mar Vermelho, ficou contemplada a entrega de armas russas ao Exército sudanês e diverso equipamento para o país, além de bens alimentares, como cereais.

Nesse momento, a 11 de Fevereiro, também o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, comentou o assunto, admitindo a sua existência e sublinhando que este depende da ratificação do Governo sudanês, sem referir a questão da necessidade de tal ser feito por um Parlamento eleito, o que não existe no país desde o golpe de Estado de 2019, no seguimento do levantamento popular que conduziu a mais uma espécie de "Primavera Árabe", na qual caiu o ditador al-Bashir.

Face a este cenário, e quando se sabe que EUA, Rússia e a China se digladiam como não se via há dezenas de anos, desde o fim da Guerra Fria, em 1990, com a queda da URSS, pela conquista de influência e acesso aos recursos naturais do continente africano, com Washington num pressing intenso para recuperar o seu próprio espaço, perdido para a China, em especial, mas também para a Rússia, as dúvidas sobre a quem mais interessa reacender a instabilidade em Cartum amontoam-se.

Porém, há uma certeza que é sublinhada por alguns analistas, que é o facto de a Rússia erguer uma base naval no Mar Vermelho, na estratégica cidade de Porto Sudão, onde, segundo o documento existente, serão ancorados até quatro navios de guerra da Armada Russa, e até 300 militares, além de pessoal de apoio civil, não ser do agrado dos Estados Unidos.

A cidade de Porto Sudão, situada no extremo este do país, na costa do Mar Vermelho, com a cidade saudita portuária de Jeddah, que é a mais importante porta de entrada marítima nesta geografia da Arábia Saudita, do outro lado do estreito, ambas com posição estratégica neste muito relevante corredor marítimo para o comércio internacional de acesso ao Canal do Suez, que liga o Mar Vermelho e o Índico ao Mar Mediterrâneo, e, dai, ao Atlântico.

E uma base naval russa nesta região, se vier a ser erguida, como está previsto entre Moscovo e Cartum, ganha ainda maior preponderância estratégica com a aproximação entre sauditas e russos, e a igualmente relevante crescente erosão da qualidade das relações historicamente sólidas entre Riade e os Estados Unidos, o que deixa Washington sem pé nesta região estratégica do Mar Vermelho, depois de o reatar das relações entre o Irão e a Arábia Saudita, por intermediação chinesa, ter criado menor aderência também no estratégico Golfo Pérsico.

Mas, se as RSF de Mohammed Dagalo conseguirem tomar o poder no Conselho Soberano do Sudão, actualmente liderado por Abdel al-Burhan, com um eventual sucesso no golpe de Estado em curso, embora não exista informação em canal aberto sobre as intenções deste general nesse âmbito, pelo menos sabe-se que Moscovo terá de renegociar as condições, sendo que existe a forte possibilidade de nem sequer vir a acontecer o "sonho" russo de ter uma presença militar nesta região.

Quem são as RSF?

Este corpo especial do Exército, criado em 2013 para combater no Darfur às ordem de Bashir, sofreu algumas evoluções dramáticas e, com o golpe de 2019, e depois em 2021, ganhou forte preponderância no país, tendo sido encarregadas de limpar as ruas de protestos, dos muitos protestos que se seguiram, exigindo democracia, tendo um registo atroz no capítulo dos Direitos Humanos.

Nos últimos anos, como referem algumas instituições internacionais, sendo que a Human Rights Watch sublinha a violência com que actua e de forma impune, especialmente sobre a população indefesa, ganhou muito poder e é agora uma ferramenta que pode ser decisiva, às mãos do general Dagalo, um homem temido pela sua selvajaria, no Sudão.

As RSF beneficiaram fortemente de apoio ilimitado do Exército, a única estrutura do Estado com poder financeiro e organização social, para esmagar os opositores nas ruas, tendo aproveitado, ao mesmo tempo, para ganhar tracção para a conquista do poder, para onde estão agora a forçar o caminho, bem armados e, segundo alguns observadores, bem equipados militarmente, o que revela também que contam com forte apoio externo. Só não se sabe ainda de quem...

Situação actual

Para já, como refere a Lusa, o Exército do Sudão garantiu no Domingo à noite que a situação era "extremamente estável" e que os combates eram "limitados", enquanto os paramilitares das RSF disseram estar "a caminho de uma vitória definitiva".

Os paramilitares alegaram terem tomado o aeroporto e entrado no palácio presidencial, algo negado pelas Forças Armadas sudanesas.

Mais de um milhar de pessoas foram retiradas no domingo de centros e instalações em Cartum, através de corredores humanitários na cidade e numa breve pausa de três horas nos combates, disse à agência de notícias Efe um trabalhador do Crescente Vermelho sudanês.

No entanto, as hostilidades não cessaram em áreas distantes dos centros urbanos, tais como perto do quartel-general do Exército, ou nas proximidades do Aeroporto Internacional de Cartum, onde ocorreu uma explosão num depósito de combustível.

No fim de semana, os confrontos entre as duas partes intensificaram-se, tendo como pano de fundo uma luta de poder entre os dois generais que governam o Sudão desde o golpe de Estado de 2021.

Os confrontos começaram na manhã de sábado, dois dias após o Exército ter advertido que o país atravessa uma "conjuntura perigosa" que poderia levar a um conflito armado, na sequência do destacamento de unidades das RSF na capital sudanesa e noutras cidades, sem o consentimento ou a coordenação das Forças Armadas.