O contexto era de Guerra Fria, no âmbito da qual Angola e o Zaire encontravam-se em campos diametral e ideologicamente opostos, liderados pela União Soviética e pelos EUA.
Sucede que nas vésperas e após a proclamação da independência de Angola, a crispação, a tensão e a inamistosidade caracterizavam as relações com o Zaire. Ambos os países consideravam-se mutuamente dilemas de segurança, por fundamental, mas não exclusivamente, duas razões.
A primeira razão, do desagrado de Angola, prendia-se com o seguinte facto: na cimeira sino-americana, havida em Peking/Beijing, a 02 de Dezembro de 1975, Mao Tsé-Tung e Gerald Ford - secundados por Deng XiaoPing e Henry Kissinger - convieram que o Zaire era o país mais confiável, a partir do qual deveriam ser levadas a cabo acções para derrubar o então novel poder político em Angola.
Desde logo, em carta dirigida à Gerald Ford, a 23 de Janeiro de 1976, Mobutu sublinhou que, face à ameaça que a intervenção cubana em Angola representava para o seu país, ""j"estime que les Etats-Unis d"Amérique doivent faire face à leurs responsabilités envers le Zaire = eu entendo que os Estados Unidos da América devem assumir as suas responsabilidades vis- à-vis ao Zaire.""
A segunda razão, desta feita do desagrado do Zaire, decorreu do fenómeno dos gendarmes katangueses que, na década de 1960, radicaram-se em Angola com o assentimento e em benefício das autoridades coloniais portuguesas. Tal aconteceu, em duas fases: em primeiro lugar, em decorrência das desinteligências no seio da classe política congolesa, desinteligências essas que desembocaram, em 1960, na secessão efémera do Katanga. Em segundo lugar, como fruto de dissensões no seio da classe político-castrense zairense. Estas dissensões levaram a que os gendarmes katangueses que, em 1963, regressaram ao Zaire no fim da secessão, acabassem por retornar à Angola depois de, em 1965, Mobutu assumir o poder. Aqui, em Angola, fundaram em 1967 a Frente de Libertação Nacional do Congo (FLNC), organização político-militar, liderada por Nathaniel Mbumba, com o foco e propósito de destronar o regime de Mobutu.
Estas razões histórico-factuais, por si só, indiciavam e configuravam um potencial de instabilidade e de insegurança ao longo da fronteira comum, em detrimento das relações de amizade, de cooperação e de boa vizinhança, que a administração Neto tinha como um dos eixos estruturantes da sua política externa.
Com este panorama em mente, e sob os bons ofícios de Marien Ngouabi, os presidentes Neto e Mobutu encontraram-se no Congo-Brazzaville, a 28 de Fevereiro de 1976, para passarem em revista e resolverem os irritantes que obstaculizavam a normalização das relações bilaterais. Neste mesmo espírito, em Junho de 1976, Neto enviou à Kinshasa o comandante Monstro Imortal, nas vestes de seu emissário especial para o Zaire.
Ao que consta, o diálogo entre Monstro Imortal e Mobutu decorreu num tom conciliatório, tendo o último prometido que tomaria medidas para evitar que, a partir do território zairense, fossem realizadas operações contra Angola. Ademais, Mobutu partilhou com Monstro Imortal algumas inquietações económicas resultantes tanto da paralização, em 1975, do Caminho de Ferro de Benguela que impedia a exportação de cobre, quanto dos vagões-cisterna do Zaire que, por razões objectivas, permaneceram do lado de cá, no Porto do Lobito.
Ora, na segunda metade de 1976, a desescalada da tensão e da crispação estava ganhando consistência e coerência, fruto das dinâmicas auspiciosas de proximidade e de rapprochement imprimidas por Neto e Mobutu. Ante essa desafiante e estruturante atmosfera de détente que, em 1976, ganhou fôlego, eis que, em Março de 1977, surge a pedrada no charco: a I Guerra do Shaba de 80 dias, originada pelas acções beligerantes levadas a cabo no Zaire pelos gendarmes katangueses.
A circunstância de, à época, os gendarmes katangueses estarem baseados em Angola e de, em Dezembro de 1974, ter sido firmado um acordo táctico- circunstancial entre a FLNC e o MPLA (de alcance intra-Angola), levaram à errada pressuposição de que a I Guerra do Shaba tivesse tido o patrocínio da administração Neto. Tal pressuposição foi e é, para os que ainda hoje a apregoam, manifestamente insustentada no minimalismo, senão mesmo niilismo, factual. Porquê? Porque a variável da agressão ao Zaire nunca esteve na pauta da política externa da administração Neto.
Ora, se assim fosse, no encontro mantido, em Abril de 1976, com Raúl Castro, então Ministro cubano das Forças Armadas, Neto não teria decidido pela retirada gradual e progressiva das tropas cubanas, cujo processo permitiu que, até Março de 1977, já tivessem regressado ao seu país 12.000 internacionalistas cubanos.
Por estranho que parecesse, as lideranças angolana e cubana convergiram, com sentido de Estado, na impermissibilidade de, em território angolano, formar-se um exército regular para desalojar o regime de Mobutu, contrariamente ao que Nathaniel Mbumba ansiava e propusera à parte
cubana (Jorge Risquet) no encontro de Saurimo, a 04 de Fevereiro de 1976. Este facto é revelador de que os gendarmes katangueses agiram por sua conta e risco e autocriação ao desencadearem as Guerras do Shaba.
De resto, a 22 de Abril de 1977, o presidente Jimmy Carter não esteve com meias-medidas ao afirmar que ""we have no direct evidence at all that there are Cubans within Zaire = nós não temos evidências nenhumas de que hajam cubanos no Zaire."" Em sentido convergente e complementar, a 01 de Julho de 1977, Mobutu asseverou que ""l"Angola, empêtré dans ses problèmes internes inextricables, n"était, manifestement, pas l"auteur principal de l"aggression commise contre nous = Angola, enredada nos seus inextricáveis problemas internos, não foi manifestamente o principal autor da agressão cometida contra nós).""
No decurso da I Guerra do Shaba, as virtualidades do prestígio e da diplomacia nigeriana vieram ao de cima. Aceite por Neto e Mobutu, e encorajada pelas superpotências de então, a Nigéria assumiu o papel de mediador. Joe Garba, à época chefe da diplomacia nigeriana, serviu de ponte e de mensageiro da paz entre ambos os chefes de Estado. Garba contribuíu, até onde foi possível, para a dessacralização e a confluência dos posicionamentos dos governos de Angola e do Zaire, cujas delegações mantiveram negociações secretas em Lagos, em Maio de 1977.
A mediação nigeriana teve o condão de solidificar os caboucos do rapprochement. Uma evidência clara disso foi o facto de uma delegação do partido MPR, então liderado por Mobutu, ter acedido ao convite de participação, em Dezembro de 1977, no I Congresso do MPLA.
Como não há bela sem senão, o degelo progressivo que, a partir do final de 1977, vinha ocorrendo nas relações entre Angola e o Zaire, sofreu, a 05 de Maio de 1978, mais um revés com a incursão de tropas katanguesas no território zairense, que provocou a II Guerra do Shaba de 6 dias. Recorde-se que, após ter tomado conhecimento que os gendarmes kantagueses tencionavam realizar uma segunda investida em direcção ao Shaba, Neto conversou com Nathaniel Mbumba, a 21/22 de Fevereiro de 1978, instando- lhe peremptoriamente a não levar a cabo os seus planos de ataque ao Zaire.
Ainda assim, Mbumba fê-lo, em contracorrente dos interesses nacional, estratégico e vital do Estado angolano, e em desalinhamento e total desrespeito da decisão da administração Neto. E tanto assim foi que, Henry Mukatchung, um dos líderes da FLNC e correligionário de Mbumba, não se coíbiu de afirmar que o último ""a improvisé la deuxième Guerre du Shaba... alors qu"il avait été bel et bien instruit par les angolais qu"il ne pouvait pas le faire = improvisou a segunda Guerra do Shaba, quando ele foi, na verdade, instruído pelos angolanos que não podia fazê-lo.""
Na reunião que manteve, a 19 de Maio de 1978, com o general cubano Senén Casas, na presença dos comandantes Iko Carreira, Xietu e Kafuxi, Agostinho Neto reconheceu ter havido muito sentimentalismo da parte
angolana para com os katangueses, em relação aos quais deviam ter sido tomadas medidas que os impedissem de tornar a operar a partir das localidades fronteiriças.
Daí que, no rescaldo da II Guerra do Shaba, o presidente Neto decidiu e agiu rápido e com firmeza: ordenou o desarmamento de 18.000 efectivos das tropas katanguesas que, com as suas famílias, foram deslocadas e fixadas em áreas a cerca de 250 km da fronteira, a fim de dedicarem-se à agricultura com o estatuto de refugiados.
Paralelamente à estas medidas que puseram definitivamente termo às actividades político-militares da FLNC em Angola, a administração Neto concebeu e implementou, com originalidade e pragmatismo, uma estratégia diplomática visando a normalização das relações com o Zaire, envolvendo outros actores. Neste espírito, a convite expresso de Agostinho Neto dirigido à Jimmy Carter, em Junho de 1978, estabeleceu-se a ponte de diálogo oficial entre Angola e os EUA, por via do qual a administração Carter contribuíu com a sua magistratura de influência para o desanuviamento das relações Angola-Zaire.
Significativamente, o mês de Julho de 1978 foi intenso e profícuo em realizações para a reaproximação e o restabelecimento do diálogo entre Angola e o Zaire, sendo de destacar: a) a I Comissão Mista, co-presidida pelo comandante Alexandre Rodrigues Kito e pelo almirante Lomponda wa Botende, que deliberou constituir a comissão de controlo fronteiriço, sob a égide da OUA; b) a formalização do estabelecimento de relações diplomáticas; e c) o encontro entre Neto e Mobutu, ocorrido no Sudão, à margem da XV cimeira da OUA.
Ao certo, a interacção do Sudão serviu de antecâmara da cimeira de Kinshasa, que traduziu-se no ponto mais alto do processo de normalização das relações bilaterais, sendo relevante que, como referiu Mobutu no seu livro Dignité pour l"Afrique (1989), o encontro com o presidente de Angola foi frutuoso e durante dez anos a situação ao longo da muito extensa fronteira comum permaneceu calma, sem diferendos directos entre os dois Estados.
Agostinho Neto alinhou pelo mesmo diapasão. Na conversa que manteve em Havana com Fidel Castro, a 26 de Janeiro de 1979, Neto informou ao líder cubano que tinha sido bem recebido em Kinshasa e que Mobutu se portara muito bem. A atmosfera distendida e cordial da cimeira foi tal que, Neto solicitou à Mobutu que enviasse ao presidente Jimmy Carter uma mensagem, transmitindo o desejo de Angola estabelecer relações diplomáticas com os EUA. Mobutu aquiesceu prontamente ao pedido de Neto, num acto de empatia diplomática, demonstrativo da proeminência histórica da cimeira, que inaugurou um novo ciclo na cooperação bilateral entre Angola e o Zaire, hoje RDC.
*Embaixador de Carreira