A definição do conceito de zona húmida surgiu na Convenção de Ramsar, tratado internacional celebrado no Irão em 1971, que define regras para acções de conservação destas áreas e dos seus variados recursos. No texto original desta convenção, o termo "zonas húmidas" possui uma definição generalizada e inclui todos os ecossistemas e habitats, continentais e marinhos, que se localizam na interface do ambiente terrestre e aquático. De acordo com esta definição, existem 42 tipos de zonas húmidas, incluindo lagos, lagoas, rios, aquíferos, reservatórios de água, pastagens, pântanos, charcos, turfas, oásis, estuários, deltas, planícies de maré, mangais e demais áreas costeiras, recifes de coral e quaisquer estruturas artificiais semelhantes.

Esta Convenção estipula também critérios para a denominação de "Zonas Húmidas de Importância Internacional", chamadas de Sítios Ramsar, reconhecidos pelas suas características, biodiversidade e importância ecológica, social e económica, local e regional. Existem actualmente mais de 2,400 sítios Ramsar no mundo. Angola tornou-se no mais recente dos 172 signatários Ramsar a 9 de Outubro de 2021, tendo nomeado 11 áreas de importância a nível nacional, e essas propostas para o secretariado Ramsar para a sua aceitação como Sítios Ramsar, processo ainda em curso.

No entanto, a nomeação nacional e potencial reconhecimento internacional destas áreas não confere, automaticamente, estatuto de protecção oficial, muito menos gestão efectiva destas zonas. Algumas destas áreas correm sérios riscos de degradação causados pela ameaça de ocupação e construção irresponsáveis, fontes de poluição não mitigadas nas redondezas e exploração desmedida e insustentável dos seus recursos. Inúmeros estudos revelam que a perda de áreas húmidas é o resultado directo de mau planeamento, monitorização e gestão, e Angola não se exclui desta realidade, inclusive nestas áreas.

A rápida destruição das áreas húmidas, reconhecidas ou não, em Angola, em particular, e no mundo, em geral, tem amplificado dramaticamente o declínio da vida selvagem. A perda de pelo menos 81% das espécies do mundo desde 1970 tem sido associada à destruição destes ecossistemas, um declínio muito mais expressivo do que espécies dependentes de qualquer outro. Esta realidade põe em causa o equilíbrio necessário para manter todas as características que tornam estas zonas importantes. Para além de as zonas húmidas de importância reconhecida por Angola estarem ameaçadas por esta factualidade, há muitas outras a nível nacional cuja ameaça de destruição poderá resultar em danos ainda mais graves para a biodiversidade e para a humanidade no nosso País e regionalmente, caso não sejam geridas efectiva e urgentemente.

Do imenso património hídrico de Angola, o Planalto Central alberga das zonas húmidas de maior importância regional, com grande potencial nacional. Albergando uma enorme linha divisória de águas de alta elevação, alta precipitação e elevado escoamento, o Planalto Central contribui para os recursos hídricos de populações, para além das suas fronteiras delineadas, e, portanto, é considerado uma "Torre de Água" pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente. É um dos centros de dispersão mais significativos de África, alimentando mais de 47 bacias hídricas internas e 6 bacias transfronteiriças. De facto, esta Torre de Água alberga 82% e 62% da área total de geração de água das Bacias Transfronteiriças do Okavango e do Zambezi, respectivamente.

Ambas as bacias hidrográficas são o núcleo da Área de Conservação Transfronteiriça do Kavango Zambezi (KAZA TFCA), a maior área de conservação transfronteiriça no mundo, que engloba 36 áreas protegidas em cinco países (Angola, Namíbia, Botswana, Zâmbia e Zimbabwe). Com +250,000 animais, o KAZA TFCA acolhe a maior população contígua de elefantes africanos (mais de 200,000), 24% da população remanescente de mabecos, pelo menos quatro mil espécies de flora e fauna e mais de 2,5 milhões de pessoas vivendo em áreas rurais. Em Angola, essa área transfronteiriça abrange os parques nacionais de Mavinga e Luengue-Luiana, na província do Cuando Cubango, ocupando uma área de cerca de 92,000 Km2 ou aproximadamente 17% do KAZA TFCA.

No entanto, as nascentes destas duas importantes bacias, no Planalto Central, não estão enquadradas no perímetro do KAZA TFCA, não são reconhecidas executivamente como áreas de importância e não beneficiam de quaisquer estatutos de protecção, apesar de fundamentais para salvaguardar as áreas húmidas, vida selvagem e subsistência humana em toda a região transfronteiriça do KAZA. A zona das nascentes, onde estão localizadas as nascentes dos rios Cuito, Cuando, Lungue-Bungo e 15 outros tributários cruciais para estes sistemas, localizado a Norte dos parques referidos, na província do Moxico, não possuem quaisquer planos de gestão e/ou monitorização.

Com uma área colectiva de 53,670 Km2, estas nascentes armazenam água das chuvas durante anos e libertam-na paulatinamente, mantendo os caudais hídricos durante episódios de seca, assegurando a sobrevivência das espécies e garantindo maior resiliência contra as alterações climáticas à jusante, contrapondo-se à excessiva captação de água ao longo das duas bacias. Assim sendo, estas nascentes jogam um papel fulcral à economia e aos esforços de conservação de todos os cinco países que integram o KAZA TFCA, e, portanto, urge reconhecer a sua importância legalmente e envidar esforços para a sua protecção efectiva. A sua nomeação como Sítio Ramsar, já proposto a alguns anos, seria o primeiro passo e incentivo para se desenvolver um Plano de Gestão minucioso para garantirmos a manutenção e monitorização desta importante área.

Adicionalmente, seria oportuno considerar uma abordagem de Reserva de Biosfera, de forma a não cairmos na armadilha do conceito clássico e neocolonista de enclausuramento da vida selvagem, que negligencia e exclui a interacção homem-economia-natureza. Tendo em conta as necessidades e costumes das comunidades locais nesta área, é necessário nos focarmos nas múltiplas dimensões dos benefícios da gestão sustentável dos recursos. Isto porque, na última década, se tornou claro que políticas não inclusivas são ineficientes no contexto de conservação actual e já não acetáveis, tendo em conta os desafios das comunidades locais em pleno século XXI. Esta abordagem inclusiva é igualmente defendida pela Convenção de Ramsar, cuja missão é de "conservar e gerir todas as zonas húmidas por acções locais e nacionais, com cooperação internacional, como contribuição para se atingir o desenvolvimento sustentável mundialmente".

Finalmente, a restauração de áreas húmidas é dolorosamente cara com baixa taxa de sucesso, e, portanto, uma gestão atempada e integrada dos seus recursos é crítica para assegurar a sua continuidade e proteger a sua integridade. Assim sendo, uma abordagem inclusiva nesta região poderá ser a solução tão esperada e necessitada para incorporar os princípios de etno-conservação à gestão integrada dos recursos das zonas húmidas. Somente desta forma poderá ser possível garantir que as comunidades locais sejam os principais beneficiários do desenvolvimento e os principais actores na protecção dos recursos de que dependem sem alternativas, transformando-os nos verdadeiros guardiões das suas terras e de toda a riqueza biológica, ecológica e geológica nela existentes.n

*Doutoranda em Etno-Conservação e Consultora do Presidente da República.