Diz muito. Não só sobre um certo olhar sobre África, mas também sobre o lugar que África do Sul conquistou no mundo. Uma jornalista de uma cadeia de televisão de um país nórdico telefona a um renomado professor de direito da Universidade de Cape Town. Entre tanta coisa que havia para perguntar, a única coisa que lhe ocorre saber é o que acontecerá à África do Sul agora que Mandela morreu.
O professor desliga o telefone e dá por encerrada a entrevista. África do Sul, afinal de contas, é África. E em nenhum outro continente os líderes atam-se de tal forma aos destinos dos seus países que, quando morrem, trazem sempre consigo crises políticas. Mas ainda que assim fosse, Mandela já não era presidente há muitos anos no momento em que morreu.
Exactamente por isso, porque ele quis deixar o poder quando ainda podia agarrar-se a ele, construiu parte do seu próprio legado deste modo. Morto, a sua morte foi celebrada como a morte de um quase santo, um visionário, e abriu as vias para uma romaria de chefes de Estado como, se calhar, só na Copa do Mundo se viu. E, hoje, já poucos se lembram que Nelson Mandela foi mortal, e como presidente também cometeu os seus erros.
Mais do que um santo, ou visionário, Nelson Mandela tornou-se um símbolo. E isso também no sentido mais material do termo. A marca Nelson Mandela faz milhões de dólares todos os anos só em direitos de autor. E enquanto o moribundo ex-presidente debatia-se no leito da morte, já os seus filhos tinham começado a luta pelo controlo dos despojos do pai. Mas foi também um símbolo no sentido mais imaterial do termo.
O símbolo de uma certa época, de um certo idealismo. O homem cuja vida o mundo celebra e se curva humildemente para a última homenagem nem sempre foi pacífico. Praticou boxe na sua juventude, e foi dos primeiros militantes do ANC a receber treino de guerrilha na Argélia. Era a favor da guerra civil como única forma de trazer o regime do Apartheid à mesa das negociações.
O homem que saiu das masmorras do Apartheid já não era o mesmo. Era um homem preocupado (alguns dirão demais) com a reconciliação racial.
E que tudo fez para criar um país em que a maioria negra não fosse tentada a vingar-se dos antigos opressores, e a minoria branca não tivesse de criar um estado independente, como única forma de preservar integridade física dos seus membros.
E pelo meio ainda teve tempo para colocar a educação e a saúde ao alcance das minorias mais desfavorecidas. Andou pelo país inteiro, pois tinha uma grande afeição pelos sítios pequenos, pelas terras que nunca recebem dignitários. E nestes sítios colocou primeiras pedras para escolas e hospitais que ainda hoje funcionam. Cometeu erros? Sim, claro. Ele próprio confessou que pouco fez para combater o vírus do HIV, antes deste tornar-se crítico na África do Sul.
E que só despertou para a dimensão do problema quando um dos seus próprios filhos morreu do flagelo. Mas o Mandela que o mundo e a África do Sul celebram é o homem idealista. É o homem que soube colocar o seu país no caminho das grandes realizações. Foi capaz de criar valores que servem de guias para a nação.
Se hoje Zuma é criticado, e mesmo vaiado no memorial de Nelson Mandela, é por causa da diferença entre a abnegação à causa nacional, do primeiro, e a preocupação com objectivos mais imediatos, como enriquecimento pessoal, do segundo. Foi isso que me passou pela cabeça na semana passado quando fui assistir a uma graduação na Universidade de Stellenbosch.
O chanceler fez um discurso em que, entre muitas outras coisas, considerou que o actual governo tem feito menos pela educação. Citou Mandela, para quem a educação foi sempre a única chave para a saída da pobreza, e disse que concordava com Malema, neste aspecto também. O mais interessante foi que ele tenha dito que a África do Sul encontrava-se num momento de decadência moral, que nada tinha a ver com o espírito de 1994, quando se pôs fim ao Apartheid e quando se balizaram os ideais que deveriam nortear a África do Sul do futuro, do nosso presente.
Ora, o tal chanceler é de uma das famílias mais ricas do país, daquelas que mais beneficiaram do anterior regime. O facto de fazer um discurso assim, com o qual muito pouca gente na sala concordava, só diz do espírito de democracia que se cultivou por essas paragens.
E isso, sim, é produto do espírito idealista de 1994. África do Sul está muito longe de ser um mar de rosas. Para muitos, pouca coisa mudou desde o final do Apartheid. Há ainda um grande caminho a fazer rumo à justiça económica e igualdade de oportunidades.
Mas o que este país sabe é onde quer chegar. Talvez nunca lá chegue, mas o importante não é o destino, mas sim percurso. E sobretudo, ao contrário do que deve ter julgado a jornalista nórdica, este país não precisa de Mandela para existir. Ele viveu e deixou o seu legado. Cabe aos que ficaram honrar a existência de um grande homem, de um líder visionário.