Sendo a inscrição na Ordem dos Médicos de Angola (ORMED) de carácter obrigatório, significa que os não-inscritos nessa instituição profissional incorrem num crime de falsa qualidade, com todas as consequências jurídicas daí decorrentes.
A "ferida" é antiga, ou seja, o exercício ilegal da medicina em Angola, sobretudo por parte de cubanos, foi sempre tratada com pinças e eufemismo, para, provavelmente, não ferir susceptibilidades e descambar em leituras políticas pouco abonatórias à imagem dos denunciantes.
Pela primeira vez, e, num assomo de coragem, Elisa Gaspar apontou o dedo a uma empresa cubana que estará por detrás desses actos ilegais.
Sem recurso à "anestesia", a bastonária acusou directamente à empresa cubana ANTEX - Antillas Exportadora de ter promovido o recrutamento e pagamento ilícito aos expatriados cubanos que, segundo a responsável, foi transformado num negócio, ao que tudo indica bastante rentável.
Reconheceu que a referida empresa, que, no passado, actuava nos marcos da amizade de Angola e Cuba, agora se tornou numa "empresa de negócios". E foi mais longe, a ANTEX "perdeu o foco na sua actuação e hoje tornou-se um negócio de médicos que exercem a profissão em clínicas privadas".
A bastonária revelou que tem recebido denúncias de que os referidos "médicos" passam receitas, mas que recorrem a outros clínicos legalizados para assiná-las.
Dito de outro modo, os cubanos estarão a fazer uma concorrência desleal aos angolanos, com poucas oportunidades de inserção no mercado do trabalho do seu próprio país.
Significa, por outras palavras, que os "neutros hermanos" mandaram às urtigas os princípios da solidariedade entre os "povos oprimidos" e da sua tão propalada ajuda desinteressada e renderam-se ao vil metal, aos "prazeres do capitalismo selvagem".
Em 2019, sem apontar os eventuais responsáveis pela ilegalidade, ela havia denunciado a existência de médicos estrangeiros falsos em Angola, tendo mesmo citado os cubanos e outros da República Democrática do Congo (RDC).
Na altura, advertiu que era necessário acabar com os que chamou de "charlatães", de forma a dar espaço aos que tinham qualificações para o exercício da actividade de medicina no País.
Muitos desses cidadãos, segundo Elisa Gaspar, chegaram ao País com a formação de enfermeiros, mas acabando de exercer actividade de médicos, e ganhavam salários chorudos, sem a devida competência profissional".
Para além da concorrência desleal, os latinos auferiam salários galácticos contra os míseros soldos pagos aos angolanos.
Num trabalho de investigação feito em 2020 pelo Novo Jornal, esta publicação concluiu que os médicos cubanos ganhavam dez vezes mais do que os seus congéneres angolanos, incluindo os detentores de especialidades.
A vaga de críticas subiu de tom, quando, no começo da COVID-19, a ministra da Saúde, Sílvia Lutukuta, foi "apertada" pela imprensa e viu-se "obrigada" a revelar que cada médico cubano auferia a quantia de 5 mil dólares americanos/mês, embora se saiba que a parte de leão desse dinheiro era absorvida pelo Estado cubano.
Se a falta de inscrição na ORMED constitui uma violação às normas estatutárias dessa instituição, não menos grave e preocupante é o facto de os médicos cubanos e de outras nacionalidades não estarem sujeitos aos testes de aptidão para aferir a sua competência profissional, fazendo que Angola possa estar a "comprar gato por lebre".
É dado adquirido que Cuba detém uma das maiores "fábricas" de médicos do mundo, senão a maior "produtora e exportadora " de clínicos que estão espalhados por vários continentes e países do planeta Terra.
Ao contrário do que acontece noutros países como, por exemplo, Portugal, Espanha, Itália, Brasil, Namíbia e África do Sul, em Angola os clínicos cubanos nunca foram submetidos aos conhecidos "exames de estado" que consistem na avaliação dos seus conhecimentos profissionais, antes da sua inscrição na ORMED. Aqui, eles limitam-se a entregar os seus diplomas, quando entregam, para a sua inscrição nessa Ordem profissional, sem os respectivos testes de avaliação.
As falhas nesses domínios não devem ser apenas atribuídas à ORMED, mas também ao Ministério de tutela que, verdade seja dita, nunca se conseguiu impor-se diante dos constantes atropelos dos médicos cubanos que aparentemente gozam de um certo proteccionismo governamental.
Sem recurso à lupa, qualquer observador chegará facilmente à conclusão de que o nosso País tem estado a pagar um certo "preço" a Cuba por esse país ter ajudado o MPLA a atingir o poder, quando do envio contingentes militares que combateram no teatro da guerra civil angolana, e que aqui verteram o seu sangue.
É nesse âmbito que se enquadrou a visita que o Presidente da República, João Lourenço, efectuou, em Junho de 2019, àquele país da América Latina, durante a qual lhe foi colocada à mesa a necessidade de Cuba "exportar" médicos cubanos para Angola.
Na altura, Cuba vivia uma situação bastante difícil depois de ter "perdido as frentes" do Brasil da Venezuela em que milhares de médicos e enfermeiros cubanos foram atirados para o desemprego, após à chegada de Jair Bolsonaro ao poder, por um lado, e, por outro, a grave crise económica e financeira em que mergulhou este último país.
Angola foi chamada a atenuar a crise cubana, algo que foi feito à custa do sacrifício de mais de 3, 500 médicos que se encontra(va)m no desemprego e que aguarda(va)m o seu enquadramento profissional; um número que, pelos vistos, terá aumentado nestes últimos anos.
Angola "sacrificou" o seu interesse nacional para acomodar os de outro país, mesmo sabendo que isso iria originar um clima de mal-estar entre os profissionais do ramo e não só.
Adriano Manuel, presidente do Sindicato Nacional dos Médicos de Angola, chegou mesmo a defender uma inserção de quotas de médicos angolanos, ou seja, por um número determinado de expatriados fossem inseridos uns tantos nacionais, de forma a equilibrar os interesses dos dois países.
Sintomaticamente, o Ministério de tutela como a ORMED ficaram remetidos a um silêncio tumular quando, em nome do interesse nacional, deveriam alinhar com o posicionamento do Sindicato.
De facto, não deixa de constituir um paradoxo a existência de milhares médicos nacionais no desemprego num país que precisa, no mínimo, de 29 mil clínicos para uma população estimada em mais de 30 milhões de almas