Com a humilhação permanente a que os filhos da terra estavam submetidos, sempre relegados para um papel secundário - o duro papel do escravizado - que comia a "fuba podre, peixe podre" que o poeta cantara, e que era assassinado, como na Baixa de Kassanje. Ou talvez pensasse na família, que deixaria em casa, em grande medida inconsciente dos mambos em que estava envolvido. Secretos, claro. Super-secretos. Super-perigosos. A família pobre que olhava para ele todos os dias com o sentimento de que ele iria mitigar o amanhã com os recursos que conseguiria com o seu esforço. Com o seu trabalho de sol-a-sol, que a sua mulher tão bem administrava, e inventava maneiras de multiplicar. A mulher que sorria, quando ele chegava, tarde, acendendo um novo sol, que mais iluminava o casebre onde a luz do candeeiro a petróleo já bruxuleava, fazendo dançar as sombras nas paredes, enquanto os kandengues dormiam, estendidos na esteira.

- "Os kandengues que ainda não dava para lhes mandar na escola", pensaria...

Ou no medo? Pois seria matar ou morrer. E nem os dias de treino nos campos afastados da cidade. Nem as catanas que pareciam o transformar, e aos seus companheiros, em arautos da liberdade de todo o povo, mesmo se este não sabia que ali estavam prontos a morrer por eles. Nem a confiança que os chefes procuravam incutir - afinal Deus ia estar com eles como o senhor Cónego decerto lhes garantira - nem mesmo esse feitiço forte da terra que acreditava o tornaria invisível, não impediria essa sensação esquisita que sempre teima em se alojar no baixo ventre. Mas quem não tem medo? Todos têm medo. Até aqueles que gostam de se exibir, mostrando os dentes e proclamando a sua coragem aos quatro ventos, decerto o faziam para afastar o formigueiro que os incomodava. O que é importante é ter consciência do medo e, ainda assim, dar o passo e arriscar a vida.

É quase certo que os minutos se arrastaram nessa noite. Os pensamentos alongando-os. Algum vislumbre de uma felicidade futura num país de iguais e livres, sem chicotes e com saúde e educação, quiçá os amenizando. Será que pensou numa cidade, num país, sem musseques? Com água canalizada, com luz? Com os filhos de todos os angolanos a pulular pelas escolas, não com a barriga grande, mas com um grande sorriso de felicidade, a felicidade que um futuro diferente, de país independente, lhes iria garantir? E numa terra de todos, e com todos a construir, a dar o seu melhor para que ela proporcionasse as condições que então não tinham, mas que o resultado do esforço colectivo, que começaria naquela madrugada, a do dia 4, que ele já adentrava, iria permitir? Uma terra de irmãos. Uma terra de camaradas. Uma terra de angolanos livres...

Que pensaria o herói enquanto caminhava naquela madrugada, vestido de preto, de catana na mão, para o seu destino? n

1 Monangambé - poema de António Jacinto