No final do século XX, com a queda do muro de Berlim, o desmembramento da União Soviética e o fim da guerra fria, ganha pelos ocidentais, África viu-se na contingência de adoptar a "democracia liberal", como regime político que proporcionaria estabilidade, liberdade, dignidade e prosperidade ao continente.
No entanto, a era de democracia, agora com mais de 30 anos, rapidamente se transformou em período de grande instabilidade, em que, a par dos golpes de Estado, se destacam "democracias" em guerra, nomeadamente Sudão, Moçambique ou República Democrática do Congo e terrorismo jihadista, sobretudo na região ocidental.
Pobreza extrema, desigualdades acentuadas, fosso entre a elite política e o povo, instituições capturadas e partidarizadas, bem como falta de transparência, de credibilidade e de independência de órgãos gestores de processos eleitorais, marcam esses regimes fraudulentos, mascarados de democracia.
A fraude política visa a manutenção no Poder de um grupo e/ou de um indivíduo, representante do seu grupo, independentemente do seu desempenho governamental e ideais políticos.
Nesses casos, o Poder funciona como via de acesso à benesses materiais e patrimoniais e estatuto social que de outra forma esses restritos membros da comunidade dificilmente alcançariam.
É assim que, nessas "democracias" africanas, fazer política dentro do grupo no Poder, a par da criação de seitas religiosas, transformou-se num meio para o enriquecimento fácil, sem prestação de contas, ou seja, tornar-se impune.
Para isso, os autores da farsa não se coíbem em despender imensos recursos em corrupção de entidades internas e externas que ajudem a travar qualquer hipótese de alternância de Poder. Transformam organizações partidárias numa espécie de seitas religiosas dogmáticas, com lideranças inquestionáveis.
Independentemente do desempenho desses governantes, mesmo arrastando o país para a miséria e a guerra, apadrinhados por ocidentais, essa elite política "ganha" sempre.
Mesmo quando, por sua acção ou inacção, dezenas ou centenas de cidadãos são mortos na via pública por forças de segurança que, em vez de se centrarem na defesa da lei e da ordem, priorizam a protecção do Poder, essa elite "ganha" os processos eleitorais.
Essas vitórias "retumbantes" (para os ganhadores) servem para transmitir a ideia de que os povos aceitam com resignação a falta de dignidade humana, a miséria, falta de escola, a opressão e repressão e a falta de esperança da maioria da população, a juventude.
Nesses países, expoentes do fracasso do simulacro de regime democrático que se instalou em África, as "lideranças democráticas", mais centradas em agradar o directório Washington-Paris-Londres, desprezam ou subestimam as populações locais.
"Líderes democratas" africanos que esbanjam milhões de dólares/euros em lobbys para encontros ou visitas de Biden, Trump ou Macron, em busca de elogios ou pseudo aprovação do Ocidente. Esta acção de mera propaganda política equivale a certificado de garantia da excelência do seu desempenho político e da democraticidade da sua governação
O lawfare - uso da justiça para travar candidaturas de adversários políticos poderosos - ocupa lugar central nessa farsa, como está a acontecer na Guiné-Bissau com as eleições gerais de 23 de Novembro próximo em que Domingos Simões Pereira (presidenciais) e a coligação PAI-Terra Ranka, liderada pelo histórico PAIGC (legislativas), foram impedidos de concorrer por tribunais.
Ou como aconteceu nas eleições da semana passada, na Costa do Marfim, em que Alassane Ouattara, 83 anos, ganha as presidenciais com 89% (para um quarto mandato), depois de afastar do processo, através de lawfare, dois adversários poderosos, nomeadamente, o ex-Presidente Laurent Gbagbo e Tdjane Thiam, antigo ministro e banqueiro internacional, escolhido como candidato do principal partido da oposição.
Golpes que decorrem sob o olhar silencioso da organização regional CEDEAO e da União Africana (UA), que apenas reagem para sancionar golpes militares, mostrando, desta forma, a sua obsolescência.
Neste primeiro quarto do século XXI, os 21 golpes de Estado militar (alguns países com dois ou três) atingiram as cinco regiões do continente, nomeadamente, Norte (Mauritânia e Egipto), Ocidental (Guiné-Bissau, Guiné-Conakry, Mali, Burkina Faso e Níger), Central (Tchad e Gabão) Oriental (Sudão) e Austral (Zimbabwe e Madagáscar).
O golpe de Madagáscar (último da lista africana e quarto, desde a Independência do País, em 1960), ocorrido em meados deste mês de Outubro, confirma que esta forma de acesso ao Poder continua a ser a única forma de alternância política em muitas "democracias".
Dirigido por Michael Randrianirina, comandante de unidade de elite, agora novo homem forte de Antananarivo, o golpe malgaxe acontece depois de semanas de protestos contra a governação do Presidente deposto Andry Rajoelina, convocados através das redes sociais por jovens da chamada Geração Z.
Tal como em outras "democracias", onde a Geração Z vai decretando tolerância zero aos desmandos governamentais, em Madagáscar, os jovens contestatários e os opositores também estavam vedados do acesso aos grandes media tradicionais públicos, nomeadamente rádios, TV e jornais.
Este golpe de Estado militar de Madagáscar é décimo no continente africano nos últimos cinco anos, desde Agosto de 2020, quando militares derrubaram o Presidente do Mali, Ibrahim Boubakar Keita, conhecido pela abreviatura IBK.
Tchad, Guiné Conakry, Sudão, Burkina Faso, Níger e Gabão são os outros países africanos sacudidos por golpes militares, entre 2020 e Outubro de 2025.
Quase que em simultâneo com o golpe malgaxe, nos Camarões, África Central, Paul Biya, outro peão da França, como Ouatarra, aos 92 anos, torna-se no protagonista principal de uma trágico-comédia política, ao ser reeleito para um oitavo mandato, numas contestadas eleições, precedidas e seguidas de confrontos nas ruas com vários mortos e muita destruição.
Biya, que por razões de saúde vive mais tempo na Europa que nos Camarões, foi reeleito sem participar presencialmente na campanha eleitoral, sendo substituído por cartazes e marionetas com a sua imagem empunhados por membros do seu partido.
Perante este quadro não é surpreendente que, de acordo com classificações internacionais, apenas sete dos 55 estados membros da UA ostentem o título de democracias. As análises desta avaliação incluem variáveis como a liberdade em geral, liberdade de imprensa e de expressão e de associação, independência da justiça, separação e limitação de poder, níveis de igualdade, entre outros.
Segundo o índice de Democracia da The Economist Intelligence Unit, estão na referida categoria, cinco estados da África Austral, membros da SADC, designadamente, Maurícias, Botswana, Namíbia, Lesotho e África do Sul e dois outros da África Ocidental, Ghana e Cabo Verde, estes dois membros da CEDEAO, região onde aconteceram mais golpes de Estado militares (14 dos 21), neste primeiro quarto do século XXI.
Neste momento de crise da democracia em todo mundo, pela incapacidade de dar respostas às desigualdades sociais criadas pelo capitalismo, e de travar o crescimento do fascismo, particularmente em países ocidentais, o continente africano precisa de repensar sobre a "democracia à africana" que pouco ou nada tem contribuído para a prosperidade dos povos.
Deve reflectir, lembrando o sublinhado de Amílcar Cabral, um dos maiores pensadores do século XX, de que o poder só faz sentido se servir para a satisfação das necessidades do Povo. "O nosso objetivo é fazer o progresso e a felicidade do nosso povo, mas nós não podemos fazê-lo contra o nosso povo", disse.
E alertara que a democracia só se torna possível com o envolvimento directo do povo afirmando: "a democracia não é uma coisa que se dá; é uma coisa que se conquista. E a conquista só é feita pela participação e pelo poder do povo".