Estamos a assistir a uma guerra de egos, de protagonismos, de poder e influência entre dois tribunais superiores, uma guerra que sempre existiu, que antes era uma guerra surda, mas hoje tornou-se já uma guerra declarada. Assistimos todos à violação descarada da Constituição. Temos, hoje, um sistema judicial já descredibilizado, cada vez mais fragilizado e agora metido numa guerra fratricida. Ninguém merece!

É importante dizer que, durante muitos anos, o TS assumiu as vestes de TC, e isso poderá ter criado uma espécie de sentimento de pertença e de certa ascendência. Desde a criação do TC, em 2008, que existe um clima de tensão com o TS, sempre gerido numa espécie de guerra surda. Não foi muito sentida no tempo do juiz Cristiano André, teve, realmente, início quando Manuel Aragão era juiz-conselheiro presidente do TS e Rui Ferreira o juiz-conselheiro presidente do TC.

O "Caso Cassule e Camulingue" foi a primeira guerra declarada entre estes dois tribunais superiores, mas não mereceu honras de destaque mediático como temos agora o "Caso 500 Milhões". Na altura, o TS de Manuel Aragão recusou-se a acatar o despacho do TC de Rui Ferreira, que considerava inconstitucional a prisão dos alegados homicidas de Cassule e Camulingue, tendo remetido para a soltura dos mesmos, por terem sido julgados por um crime que não cometeram, ou seja, o TC considerou inconstitucional a decisão do TS. O TS, na altura, não acatou a decisão e manteve-os na prisão.

O TS de Manuel Aragão entendia que o TC de Rui Ferreira estava a entrar numa matéria que não era da sua competência, ou seja, estava a colocar a foice em seara alheia. O TC de Rui Ferreira sentiu-se obrigado a tomar a decisão que o TS de Manuel Aragão se recusava a tomar e emitiu os mandados de soltura para Cassule e Camulingue. E assim se colocou fim a uma injustiça que prevalecia por certa arrogância do TS e ficou o registo da primeira guerra declarada entre esses dois tribunais. Se fosse pelo TS, até hoje Cassule e Camulingue na prisão continuariam acusados de um crime que não cometeram.

Por ironia do destino, Rui Ferreira e Manuel Aragão vieram a trocar de lugar, ou seja, Rui Ferreira foi para juiz-conselheiro presidente do TS e Manuel Aragão para juiz-conselheiro presidente do TC. Penso que, uma vez no TC, Manuel Aragão compreendeu a verdadeira função desse órgão e não deixou de ter tensões com o TS, já com Joel Leonardo na liderança.

Na verdade, o que temos aqui é um problema de quem tem mais poderes. O TS sempre teve dificuldades em acatar decisões do TC. O TS de Joel Leonardo entende que é o "supremo" de todo o sistema judicial, que é o que tem mais poderes do que os outros. E o que fazem? Não aceitam a decisão do TC, pretendem realizar um novo julgamento e estão nem aí para a CRA.

Joel Leonardo sentiu-se "desautorizado" pelo TC, está a pessoalizar o processo e vai entrar numa guerra contra o TC de Laurinda Cardoso. Com certeza, os arguidos do "Caso 500 Milhões" vão recorrer desta decisão do TS e vão recorrer novamente ao TC, que poderá declarar novamente inconstitucional. E vamos andar nisso? Afinal, quem tem a última palavra? Que País é este, onde não se respeitam decisões de um tribunal dos direitos humanos, dos direitos fundamentais? O TC é a única instância no País que julga processos que violam direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

O TC é, na verdade, um tribunal de direitos humanos, é o guardião da Constituição, um fiscal das leis constitucionais. É preciso que se perceba que o TC e o TS são instituições com competências diferentes e são órgãos de soberania. Ninguém aqui manda ninguém! Temos de deixar estas guerras de egos, de protagonismos, que chegam ao ponto de ainda se discutir quem é que fica mais à frente nas viagens ou cerimónias protocolares. De quem não pode ficar "junto e misturado" com os outros tribunais no Palácio da Justiça, até ao aberração de querer fazer ver quem é confiança, influência ou protagonismo junto do Chefe, ou seja, do Presidente da República.

Estamos perante uma crise institucional no Direito e no sistema judicial, com um ambiente de incertezas, inseguranças e medo. Qual é o juiz, qual é o cidadão que não fica com medo quando não se respeitam decisões de tribunais superiores e relacionadas com os direitos fundamentais? Quando estamos perante um poder judicial que procura mostrar-se arrogante, incompetente e autoritário? Os votos vencidos de Norberto Capeça e de Teresa Buta são um alerta ao cumprimento da lei e da obediência à Constituição. Começamos a ver no TC e no Supremo alguns juízes já "desalinhados" de certas manobras da "orquestra", que não querem ser julgados pela história e que estão a olhar já para além de 2027. Enquanto entre os tribunais superiores se luta e discute sobre quem tem a última palavra, na vida e na História, quem tem a última palavra é o povo.