Relativamente ao fenómeno "Guerra", não restam dúvidas que constitui a maior barbárie que os Estados possuem no seu canivete suíço de resolução de conflitos e catálogo de aspirações. Contudo, sendo um instrumento de último recurso ao dispor dos Estados, esta potencial realidade não é negável, sob pena de se entrar num perigoso reino de fantasia, onde a paz perpétua impera entre os Homens.
É factual que, decorrente da implosão da ex-URSS e da fragilidade da principal entidade política dela resultante - a Federação Russa (FR), se gerou um enorme vácuo geopolítico em todo o seu antigo espaço de influência, o qual começou desde logo a ser disputado por actores externos. Estes procuraram, por um lado, preencher a lacuna entretanto gerada (o Poder tem "horror ao vazio") e, por outro lado, procuraram capitalizar essa interferência.
Desde a independência do país, em 1991, que a Ucrânia encerra duas grandes visões e direcções estratégicas, decorrentes essencialmente de uma fractura civilizacional que ocorre no seu seio - uma claramente pró-ocidental, com fortes apoios no Oeste do país, outra, pró-russa, apoiada pelo significativo sector eslavo, bastante visível no Leste, sendo de salientar que a visão ocidentalista começou a ter bastante expressão especialmente a partir de 2004, aquando da concretização da chamada "Revolução Laranja".
Com efeito, desde essa data, exceptuando o período da presidência de Yanukovitch (um pró-russo que chegou a tentar uma solução "híbrida" entre um aprofundamento da relação com a UE e a manutenção de uma relação privilegiada com a FR), o regime tem vindo a encetar uma clara aproximação às estruturas políticas, económicas e securitárias ocidentais. Saliente-se, contudo, que em 2008, não obstante a (musculada) proposta norte-americana de adesão da Ucrânia à NATO, a França e a Alemanha manifestaram o seu "veto implícito", tendo assim sido abandonado,
temporariamente, esse processo, assim como o da Geórgia. Desde 2014, com a eleição de Petro Poroshenko, e depois em 2019, com Volomydyr Zelensky, regressou à geopolítica ucraniana a visão ocidentalista, materializada pelo aprofundamento das relações com a UE e com a NATO, tendente à integração do país nestas duas estruturas.
Em paralelo a este processo ocorreu um outro, profundamente transformador das relações de Poder no seio da geopolítica europeia - a recuperação pela FR de parte seu potencial político, económico e militar e, consequentemente, de parte do seu anterior estatuto, resultante em grande medida da vontade e determinação de Vladimir Putin e do seu inner-circle, ao potenciar e capitalizar o único "kit de sobrevivência" que o país então possuía - os significativos recursos-naturais do país, em especial petróleo e gás natural.
O primeiro grande sinal desta nova postura russa foi materializado no ("must-read") discurso de 2007 de V. Putin, na Conferência de Segurança de Munique, em que o líder russo apelou (ou implicitamente "exigiu") a uma profunda alteração do referencial político, económico e de segurança do sistema internacional, já que, segundo o próprio, a unipolaridade protagonizada pelos EUA desde a implosão da ex-URSS havia terminado. A anexação da Crimeia e a emergência de um clima de instabilidade política, social e de segurança no leste ucraniano e russófono do Donbas, real e/ou artificialmente alimentado, constituíram o passo seguinte da FR. Tal teve como objectivo parar as visões ocidentalistas e/ou a manter algum controlo sobre os destinos políticos da Ucrânia, país que a par da Bielorrússia, a Federação considera, justificadamente ou não, como um "interesse vital" para a sua segurança, desejando transformar aquele espaço numa zona tampão entre a NATO e o território russo.
Neste particular, não será assim de estranhar o facto de o presidente russo colocar a possibilidade de emprego de armas nucleares no actual Teatro de Operações (TO), o que desde logo limita substancialmente, ou mesmo impede, qualquer apoio directo por parte da NATO, sem que tal possa significar o eventual escalar do conflito para o patamar nuclear, este sim, inimaginável.
Em jeito de conclusão, julga-se poder afirmar-se que (I) independentemente da complexidade da evolução da actual situação de segurança na Ucrânia, (II) da evolução e reacção do quadro geopolítico mais amplo em que também se insere, (III) da evolução da postura e resiliência russa em função das múltiplas e variadas pressões de que é alvo, e, convirá igualmente relembrar, (IV) das consequências que as sanções projectarão no mundo ocidental, e mesmo globalmente, um cenário parece ganhar corpo - a determinação do empenho russo numa aventura estratégica desta dimensão indicia claramente que qualquer base negocial para a obtenção de uma Paz digna desse nome, e perdurável, apenas será exequível se, no mínimo, as preocupações de segurança da FR forem devidamente consideradas e materializadas (a) numa Ucrânia (e eventualmente a Bielorrússia) com um estatuto neutral, (b) com a garantia da sua não integração na NATO, e/ou, não será de descartar, (c) com a garantia de uma não adesão plena à UE.
Quanto às eventuais repercussões do conflito no continente africano, entre outras, os países produtores de petróleo, gás natural e outros recursos minerais serão certamente menos prejudicados, já que se verifica uma alta de preços resultante da diminuição da oferta e da frágil situação de segurança. Contudo, poderão revelar-se seriamente preocupantes as consequências da provável e forte crise de produção no sector alimentar, uma clara vulnerabilidade da quase generalidade dos países do continente, passível de projectar graves repercussões políticas e sociais, nomeadamente um aumento exponencial da emigração em direcção a Norte.
* Coronel do Exército português (Ref.)