Em pleno século XXI, ainda vejo no País um cenário não muito diferente daquele que eu e muitos da minha geração vivemos na década de 80, quando se levavam bancos de madeira ou latas vazias de leite Nido para se sentar durante as aulas. Tudo isso num País cujo OGE 2023 tem uma cabimentação equivalente a 26, 6 mil milhões Kz (equivalentes a 32, 2 milhões de dólares norte-americanos ao câmbio do BNA) para a aquisição de carteiras. Existe em Angola um Plano Nacional de Distribuição de Carteiras, mas também existe uma "mão invisível" a orquestrar uma estranha dança das carteiras em Angola.

Dia 14 de Outubro fará um ano desde que um professor em Viana (Luanda) liderou uma manifestação com mais de 300 anos, para reivindicar a falta de carteiras na sua escola. A manifestação foi reprimida pela Polícia Nacional, o professor foi detido e suspenso. O caso teve grande impacto mediático e dividiu opiniões na nossa sociedade. Houve quem acusasse o professor de ter sido inconsequente, de ter manipulado e exposto alunos menores a certos perigos e que a sua acção visava apenas obter protagonismo e alguns bons minutos de fama. Por outro lado, houve quem entendesse ter sido a forma mais correcta de chamar a atenção para uma situação que há anos tem afectado vários alunos de Viana, de Luanda e do País. Como em quase tudo em Angola, a situação ganhou contornos políticos com acções de propaganda e aproveitamento político à mistura. Certo é que, passado quase um ano, a situação pouco ou nada melhorou.

Na verdade, até houve mais cabimentação de verbas, e o cenário não se alterou. No OGE 2022, foi alocada a quantia de 19, 4 mil milhões Kz (o equivalente a 23, 5 milhões de dólares norte-americanos ao câmbio do BNA) para a aquisição de carteiras, e nem mesmo com o aumento de verbas, este ano, a situação melhorou. Por que razão ainda faltam carteiras nas escolas em Angola? Onde é que são adquiridas e como são distribuídas as carteiras em Angola? Por que razão ainda continuamos a ser confrontados com esse cenário triste e deplorável que a presente edição do NJ apresenta? Um País com matéria- prima suficiente não consegue criar uma estratégia sustentável para a produção interna de carteiras escolares? Pode ser uma forma de gerar rendimento e empregos, envolvendo carpinteiros, marceneiros, serralheiros e outros agentes.

O NJ traz aqui a realidade das províncias de Luanda, Benguela e Malanje. Estamos a falar de três de 18 províncias de Angola, quer dizer que o buraco é muito mais fundo e o cenário não é nada animador. Em Malanje, das 11 mil carteiras que constavam do plano anual, ainda nem metade chegou ao destino. E em Benguela, o cenário não é diferente. Esse défice gritante de carteiras pelo País só nos faz chegar a uma conclusão: andamos a brincar de ensino! Se há dinheiro, por que razão não há carteiras? Se há dinheiro cabimentado, por que razão não se disponibiliza? Vamos continuar a ter responsáveis que desviam bens públicos (como carteiras) para os seus negócios privados? Temos recebido denúncias de que muitas carteiras que deviam estar em escolas públicas acabam por ser colocadas em colégios privados, onde outros interesses falam mais alto. Vamos continuar a ver os anos passarem e situações dessas permanecerem. Como é que as nossas crianças vão assimilar conhecimento? Como é que vão ter aproveitamento estudando nestas condições desumanas? Já não há responsabilidade? É tamanha a impunidade e compadrio que o anormal se vai tornando normal.

Os cidadãos já não acreditam em responsabilidade e responsabilização de quem governa ou gere a coisa pública. Estou aqui eu a escrever, o NJ a reportar e o leitor a tomar nota, e será que alguém acredita que isto irá alterar alguma coisa? Acham que os decisores estão mesmo interessados com isto que aqui estamos a destacar? Já vai deixando de haver responsabilidade ética e moral. Já vai deixando de haver preocupação com os problemas dos cidadãos. Há, entre aqueles que exercem funções de Estado, pouco ou nenhum sentido de Estado. Mesmo que haja uma dança das cadeiras, a nível governamental, nada muda a dança das carteiras que há anos temos verificado.

Agostinho Neto disse que "o mais importante é resolver os problemas do povo". Isso são palavras muito bonitas e que sustentam certa retórica política, mas o certo é que as nossas lideranças actuais não querem saber do povo e das suas dificuldades. Está cada um a pensar no seu bolso e nos "seus" e como se safarem quando um dia o poder deixarem. Os "marimbondos" que delapidaram o erário, que colocaram dinheiro da terra em contas bancárias no exterior e que "estimularam" economias alheias, foram substituídos por uma "espécie" muito mais gananciosa, letal e perniciosa a que chamo "Iluminados do Kafocolo", inspirado numa expressão usada por Paulo Flores. São "Iluminados" porque se acham senhores e donos da razão, porque entendem que só eles têm o conhecimento e ideias para governar o País.

Quando terminar a "Década das Luzes", vamos constatar que os nossos "iluminados" só estavam preocupados com o seu "kafocolo". Tal como com os "Marimbondos", a estratégia pessoal é sempre de levar mais algum para os seus "kafocolos". Mesmo quando terminar a "Década das Luzes" e chegar uma nova dança das cadeiras, o dilema para os cidadãos será sempre este: Mais um esperto para nos enganar e mais um deserto para atravessar! Infelizmente, tem sido assim. Infelizmente.