Apesar desta imagem de falência institucional, "o sistema político congolês manteve-se de forma surpreendente" , manifestando uma resiliência que se afirma desde a proclamação da independência, através de adaptações e reconversões significantes que importa compreender para lá das generalizações que se usam para sintetizar a sua realidade.
É verdade que, durante o período de guerra civil, o Estado na RDC perde capacidade de organizar o espaço público devido à "falta de meios, à privatização do controlo burocrático e do impacto de uma dezena de lutas entre grupos armados" . No entanto, esse declínio da capacidade do Estado burocrático não engendra um vazio de governação, quer porque os agentes do Estado se servem da sua autoridade para aceder aos recursos (nacionais e locais), quer porque entram em cena outros actores que o substituem na tarefa de fornecimento de bens e serviços às populações. Estes novos actores, sejam autoridades tradicionais, grupos da sociedade civil, igrejas, organizações humanitárias ou agências de desenvolvimento, penetram "espaços activos de negociação e de mediação política para a realização dos objectivos públicos ou a distribuição da autoridade pública, nas quais as identidades locais e regionais e as relações de poder se redesenham e redistribuem" .
Ou seja, mesmo numa situação extrema de ausência do Estado, no caso da administração local, isso "não significa que o vazio existe no seu lugar". Segundo Bierschenk e Olivier de Sardan, "a vida local pode sofrer uma subadministração, ao mesmo tempo que continua caracterizada pela cupidez, geralmente latente e disfarçada, dos conflitos e pela negociação entre diferentes autoridades, clãs e facções" . E é, por isto, que "o estudo da política e o dos poderes locais não podem ser reduzidos às instituições formais, é necessário levar em consideração todos os "espaços públicos" e as posições de autoridade" , procurando entrelaçar uma perspectiva de análise por cima que capte as reformas, as dinâmicas das instituições e os discursos do poder, à outra por baixo que perscruta a voz dos actores da sociedade civil local e observe e analise as suas acções de estruturação, inovação e densificação das suas reivindicações, evitando perspectivas normativas ou morais, ou mesmo a desvalorização das suas formas de autogoverno.
A evolução da situação política na RDC preocupa a Administração americana que agora, pela voz de Joe Badin, na última reunião do G7, dividiu o mundo em dois blocos: o dos países democráticos e o dos países autoritários. Esses dois blocos excluem-se mutuamente e cada um trabalha para alargar o seu campo. No sentido de alargar o campo da democracia, Lisa Petterson, subsecretária-adjunta para a democracia, direitos do homem e trabalho, esteve recentemente em Kinshasa, onde trabalhou, quer com as autoridades políticas, quer com a sociedade civil, naquilo que foi designado por "diálogo bilateral sobre direitos do Homem", tendo no centro as futuras eleições presidenciais, legislativas e provinciais, previstas para 2023. A administração americana reporta de grande importância o cumprimento do calendário eleitoral, nos termos da Constituição congolesa e insiste no cumprimento do dead line fixado, declarando a sua disposição para subvencionar a sua realização. Porém, nada foi dito sobre as eleições municipais que não se realizam desde 1989 e já foram, mais recentemente, adiadas várias vezes, quer por falta de financiamento, quer por causa da pandemia.
No entanto, as virtudes da democracia local continuam a ser louvadas por todos, e a RDC assinala, na sua história política, um primeiro momento de eleições antes da independência, quando foram feitas eleições municipais, experiência histórica que ocorreu em vários outros países africanos e em que a democracia local infantou a independência. Também se constata actualmente que as democracias africanas mais dinâmicas são aquelas que dispõem de uma democracia local activa que faz movimentar as instituições locais na procura da satisfação das demandas dos munícipes, de uma gestão transparente e com prestação de contas, diante de órgãos representativos locais eleitos e perante uma sociedade civil exigente e participativa. O que se tem traduzido na progressiva melhoria das condições de vida dos cidadãos e na consolidação de uma cultura democrática.
Os Estados Unidos, pela sua realidade comunitarista, em que a democracia local é de importância vital, devia ser o país que melhor compreende a força estruturante da democracia local. Essa compreensão deveria, logicamente, conduzir a uma mudança na abordagem da construção da democracia em África, investida num processo inverso que fosse debaixo para cima. Em consequência, todos os países democráticos, querendo alargar o seu campo, deviam investir fortemente na implementação de sistemas de democracia local, nos países africanos, certos de que esta teria efeitos seguros e duradoiros porque iria fundar outra relação entre poder e sociedade, entre governantes e governados, em que esses seriam participes e fiscalizadores da boa governação daqueles, sendo esta entendida como a busca de desenvolvimento integrado e inclusivo, de participação e respeito de direitos e de solidariedade social. n

* Investigador-coordenador do CEA-UCAN e membro do programa de pesquisa "Melhorar o ambiente de pesquisa em Angola por meio do desenvolvimento de capacidades (2019-2024), financiado pela Embaixada da Noruega e integrado por Scanteam, CMI (Noruega) e UCAN, UAN e Piaget-Benguela (Angola).

1 Peter Evans,1989, ao estabelecer uma classificação de tipos de Estado, apresenta uma escala em que surge no topo o Japão, como "Estado desenvolvido", no meio, o Brasil, como "um outro apparatus" e, no fim, o Zaíre, como "Estado predador", in A que Estado Africano você se refere? Ontologias diferentes, Estados diferentes, (PDF) In
https://www.researchgate.net/publication/348964697_What_African_State_are_you_referring_to_Different_ontologies_different_States [accessado a 29 de Abril de 2021].
2 La décentralisation en RD Congo : quelle application ?, Justice & Pax, juin 2020, PDF, p. 4. Em linha https://www.justicepaix.be/IMG/pdf/2020_analyse_la_decentralisation_en_rd_congo_quelle_application.pdf).
3 Koen Vlassenroot (tradução Nathalie Delaleeuve), Négocier et contester l"ordre public dans l"Est de la République Démocratique du Congo", Politique Africaine, 2008/3 (nº 111), pp. 44 a 68, p. 1, em linha https://www.cairn.info/revue-politique-africaine-2008-3-page-44.htm.
4 Koen Vlassenroot (tradução Nathalie Delaleeuve), Ibdem.
5 C. Lund, «Twilight institutions: Public authority and local.... », citado de Koen Vlassenroot (tradução Nathalie Delaleeuve), Négocier et contester l"ordre public dans l"Est de la République Démocratique du Congo", Politique Africaine, 2008/3 (nº 111), pp. 44 a 68, p. 1, em linha https://www.cairn.info/revue-politique-africaine-2008-3-page-44.htm.
6 Bierschenk, T., & De Sardan, J. (1997). Local Powers and a Distant State in Rural Central African Republic. The Journal of Modern African Studies, 35(3), 441-468. Retrieved June 27, 2021, from http://www.jstor.org/stable/161750.
7 Bierschenk, T., & De Sardan, J. (1997). Local Powers and a Distant State..., ibdem, p. 441.