Nesta "sociedade dos vivos" em que nos encontramos, há várias formas de lidar com o facto de que vamos morrer - não discutir a morte não é evitá-la. Há que desenvolver a consciência de que a morte existe e chega a todos e de que os mortos merecem respeito e dignidade. É esta evidente desvalorização da vida e banalização da morte que faz manchete nesta edição do NJ e que deve merecer a preocupação de todos.

A reportagem foi feita na Morgue Central de Luanda, na Morgue de Cacuaco e na Morgue de Camama. Lá foi possível ver de perto aquilo a que chamamos "desumanização do morto" e a precariedade do trabalho de quem deles tem de cuidar. A Morgue Central de Luanda, que não fica muito distante do centro dos poderes Político, Legislativo e Judicial, é um espaço pouco digno de respeito à alma e honra de quem já partiu deste mundo.

As gavetas, com uma sobrelotação de corpos, salas sujas e imundas e cheiro nauseabundo, têm corpos largados ao chão, sem honra, respeito nem glória. Estes espaços tornaram-se em locais que promovem vários tipos de actividades, surgindo a figura do "morgueiro", que é o trabalhador eventual que carrega, lava e prepara os corpos.

Existem os vendedores de bebidas espirituosas (destaco aqui o whisky de pacotes, o tal "recarga") que servem de estimulante para os tais "morgueiros" e também para aliviar as "malambas da vida" daqueles que perderam um ente querido. A desumanização e a falta de dignidade são, também, extensivas aos funcionários que, exercendo uma actividade tão sensível, exigente e desgastante, ainda "levam" verdadeiros salários de miséria.

A Câmara 5 é que é, literalmente, a verdadeira câmara da morte. É nela que são "despejados" os corpos dos cidadãos sem identificação, aqueles sem contacto, informação ou reclamação dos familiares. Aquele espaço é um verdadeiro inferno na terra! Ver o abandono e o abandalho daqueles corpos cria indignação e dá medo de morrer.

Uma manhã na Morgue Central de Luanda é uma experiência marcante e revoltante para toda a vida. Há uma enorme fila de veículos particulares e funerários que fazem um movimento de entrega e levantamento de corpos, gritos e choros de familiares. Está a morrer tanta gente em tão pouco tempo. E acabamos por ficar com uma espécie de "culpa de sobrevivente". Somos os sobreviventes com a ideia de que podíamos ter feito mais, de que podíamos ter cuidado melhor daqueles que agora partiram. Somos os sobreviventes que se "salvaram", mas que um dia nos iremos juntar aos que partiram.

Somos os impotentes, porque olhamos e nada conseguimos fazer. Somos os impotentes e com sentimento de culpa, porque desvalorizamos a vida e banalizamos a morte. Somos os envergonhados, porque falhamos em dar dignidade aos vivos e honra os mortos.

É necessário olhar e cuidar da saúde dos mortos. A dignidade da pessoa humana não termina com a morte. É preciso que se invista e se criem condições dignas nas morgues e que se honre a alma de quem já partiu.

Estes mortos já não podem ressuscitar com saúde como Cristo ou a figura da ficção angolana, o João Kiomba. Precisamos, também, de que a Saúde dê dignidade e saúde aos mortos.