Com o MPLA no poder, e a construção do "socialismo" em marcha, Bilé, operário especializado e gestor reconhecido num momento de extrema carência de pessoas com essas valências, ideologicamente próximo, assumiu a direcção da PECLENE, uma das unidades fabris que tinham sido abandonadas no pós-independência.
Com a sua natural capacidade de liderança, o seu espírito empreendedor, e uma enorme vontade de "Resolver os problemas do Povo", manteve a fábrica organizada, os seus trabalhadores motivados, atingindo (e ultrapassando) as metas de produção, que, naqueles anos tão centralizadores, eram definidas por um longínquo Ministério da Indústria.
O drama das sociedades demasiado centralizadas é o peso que assume a burocracia (particularmente se a máquina que a gere e a deveria controlar é ineficiente). Por outro lado, o afã centralizador, que, nesses períodos, é confundido com "organizador", leva a assumir tarefas claramente fora do âmbito da estrutura central, o que não só esvazia as funções da gestão no local, como cria (porque raramente funciona de forma adequada) problemas à unidade de produção.
Os salários dos trabalhadores da fábrica eram, naquele tempo, pagos centralmente e, quase sempre, atrasavam - às vezes por meses -, criando dificuldades aos trabalhadores que deles dependiam para a sua subsistência. Para contornar esse problema, Bilé promoveu um sistema que, quando havia atraso no pagamento de salários, permitia entregar aos trabalhadores alguns artigos produzidos na fábrica, que eles comercializavam fazendo assim face às necessidades do lar, enquanto não caísse o salário.
Tudo funcionava, até que alguém, por excesso de rigor burocrático, ou com o "olho gordo" com fito na direcção da fábrica, decidiu acusar Bilé de sabotagem económica!
Bilé foi preso.
Um amigo dele (e meu amigo, que me relatou esta estória) foi visitá-lo à cadeia do Huambo. Ali, cerca da Universidade, no Santo António. Esperava encontrá-lo acabrunhado. Desanimado com tamanha injustiça. Mas não! Encontrou um Bilé cheio de energia que lhe contou, entusiasmado, como já tinha conseguido ajudar outros detidos a organizar a sua vida na prisão fazendo uso da sua anterior experiência como preso político.
As melhorias foram evidentes, não só do ponto de vista administrativo, como TAMBÉM instituindo actividades para melhorar a vida dos reclusos, como a alfabetização e as rotinas para se cuidar da higiene do espaço.
- Sei que sairei sair em breve, dizia com aquele carregado sotaque alentejano.
O problema é que agora o director não quer que eu saia, pois quer que eu dê continuidade ao trabalho que estamos a fazer! Riram-se com o caricato da situação. O meu amigo surpreendido com a atitude do Bilé.
Bilé saiu, efectivamente. Uns anos depois, aquando de mais uma mudança da maré, foi evacuado para Portugal num voo especial que foi recolher cidadãos portugueses ao Huambo.
Regressou a Angola na primeira oportunidade. Enquanto em Luanda, onde se deslocava a pé, para resolver os seus assuntos, sempre com uma pastinha debaixo do braço, foi abordado em plena via pública por um grupo de assaltantes que procuraram retirar-lhe a inseparável pasta. Resistiu. Foi morto.
No ano da (des)graça de 1993.