Uma das questões de pequena dimensão, vítimas desta miopia por serem uma "ninharia", são as bóias flutuantes de navegação marítima que simplesmente desapareceram do nosso mar e a meia dúzia que sobrevive está isenta de manutenção e fiscalização e não constitui nenhuma preocupação para a Administração Marítima. As bóias de navegação são obrigatórias quer pelas leis internacionais, quer pelas leis nacionais. Essas bóias visam a salvaguarda da vida no mar, são identificadoras de vários tipos de perigos, servem para delimitar áreas estritamente proibidas para a navegação e são importantíssimas em canais, pois alertam para as águas rasas e lajes perigosas, que impedem que os barcos encalhem. Apesar de o Estado ter criado um novo imposto para as embarcações, que, para a maioria dos armadores, é um abuso de autoridade, face aos impostos que já pagam, ainda assim não se dignaram a cumprir a lei, substituindo as moribundas, fundidas e desgarradas bóias. A pergunta que se coloca é se não conseguem sequer manter umas bóias vitais à navegação, como pretendem aventurar-se em mega projectos que até já estão em curso, a exemplo de novos aeroportos, portos e metros de superfície? Ou assistiremos a outros desastres financeiros e de gestão como foram os Catamarans que faziam a ligação Porto de Luanda/Capossoca?
Vem, também, a propósito das "ninharias" de somenos importância, a triste e preocupante realidade da maioria das escolas de Luanda e do resto do País que continuam sem água e com as suas casas de banho encerradas, forçando alunos e professores a urinar e a defecar no quintal do recinto escolar ou nas suas imediações. Como faz uma menina quando está menstruada numa escola sem casa de banho? Quando começou a Covid-19, assistimos a um sem número de declarações dos Ministérios da Educação, da Saúde e da Energia e Águas sobre as soluções que iriam ser criadas. Os governos provinciais garantiram formas eficazes e céleres para resolver este problema. Mas infelizmente ninguém foi para além da improvisação da aquisição de bidões que apenas serviam para higienizar as mãos à entrada da escola. A água para as casas de banho continuou a ser uma ninharia de somenos importância, provando quão falsas foram as intenções. A pergunta que se coloca é como é possível continuar a gastar milhões de dólares na construção de novas e fantásticas escolas se não se consegue sequer fazer a manutenção nem se garante o abastecimento de água canalizada? Pedir água no século XXI não é um luxo num país que vende petróleo, que está cheio de generosos rios. Os romanos há três mil anos já tinham garantido água canalizada, construindo impressionantes aquedutos que existem até hoje e esgotos. Uma escola sem água constitui um gravíssimo problema de Saúde Pública. A terceira "ninharia" que seleccionei são os Centros de Nutrição Infantil. Desde 2018, foram encerrados 61 Centros de Nutrição e Internamento para a Recuperação Nutricional e 225 Unidades Nutricionais Ambulatórias, quando os dados provam que há fome em Angola faz tempo e foi reconhecida a morte de 46 crianças por dia, vítimas de malnutrição severa. Não tive acesso ao custo de manutenção destes centros, mas a justificação do seu encerramento por parte do Governo foi que não havia verbas para continuar a sustentá-los. Importa aqui referir que o custo da prevenção da malnutrição está estimado entre 5 e 12,5 dólares, mas o tratamento de uma criança malnutrida pode variar entre 75 e 500 dólares, de acordo com o UNICEF e a ADRA, na sua avaliação sobre Nutrição, Segurança Alimentar e Agricultura no OGE, feita em 2018. Em Angola, apenas 1% das crianças, dos 0 aos 17 anos, não é afectada por nenhum tipo de privação, de acordo com a Avaliação da Pobreza Multidimensional na Infância feita pelo INE e pelo UNICEF (as privações avaliadas são a nutrição, saúde, protecção infantil, prevenção da malária, educação, exposição aos meios de comunicação social, habitação e água e saneamento). Esta "ninharia" não se torna importante para ser integrada no OGE a cada ano, porque é preterida em função de um sem número de obras públicas, por todos conhecidas e por muitos contestadas, inauguradas com pompa e circunstância, mas que em nenhuma língua falada neste planeta se podem considerar prioridades quando nos morrem filhos todos os dias e a saúde pública está de rastos por causa da ausência de seriedade no desenvolvimento de programas credíveis de saneamento básico. Sem uma população saudável, o futuro está ameaçado, como todos sabemos. Estes três exemplos, de alguns assuntos estruturantes, são, há décadas, desvalorizados pelo nosso Governo e sistematicamente preteridos. Podíamos enumerar, sem esforço, mais 200 exemplos que provam a diferença de opinião entre aquilo que é uma prioridade para o Governo e aquilo que é uma prioridade para o desenvolvimento. O País tem os mesmos problemas há 47 anos. Nem no tempo em que crescemos 13% fomos capazes de saltar para o patamar do desenvolvimento. A ausência de problemas novos é uma clara evidência da falta de desenvolvimento que jamais acontece sem a interligação de todas as premissas, não é automático e exige um PLANO BASEADO NA CIÊNCIA e não, como tem acontecido, querer disfarçar o desenvolvimento colocando-o a reboque de um amontoado de negócios pessoais cozinhados pelos donos da cozinha do poder. O jornalista Reginaldo Silva é autor da "Teoria do Buraco Grande". Segundo Reginaldo Silva, enquanto o buraco é pequeno, não é motivo de atenção por parte de ninguém, porque não é "atractivo". O buraco tem de se tornar numa cratera para que seja reconhecido a todos os níveis como interessante, oportuno, inadiável e de intervenção emergente e nesse momento são mobilizados todos os recursos. O Caudal de asneiras a que estamos a assistir desde 2002 até hoje, provocado pelo voraz apetite pelo "Buraco grande", é de tal forma nefasto que já estaríamos todos cegos se neste monte de asneiras houvesse luz. Estamos a construir a casa na mexa e pelo telhado. Essa é a verdade. Ninguém quer saber das fundações, das estruturas que suportam qualquer edifício. Sem que a questão das fundações esteja assegurada, nenhuma política pública será bem-sucedida. Aqui se percebe quão imprescindíveis são as bóias de navegação, em toda a nossa vida e, sobretudo, na gestão de um país. Sem elas, não há limites, não se salvaguarda o perigo das decisões, não se delimitam caminhos e, sobretudo, não é possível ser consequente no trajecto. Sem um caminho assinalado, todas as prioridades são ofendidas, as políticas públicas encalham, a vontade pessoal do apego ao poder por mais incoerente que seja ganha sempre, o País não se liberta da insuficiência e por isso será incapaz de se erguer.As bóias de navegação
A governação angolana é míope em relação às questões de pequena dimensão. Isto é válido quer se trate do poder central, quer se trate do poder local. O problema enferma ministérios, institutos públicos, administrações e está base da falência das políticas públicas e por mais volta que se dê nunca conseguirei aceitar esta anomalia da gestão da coisa pública por me parecer que, ao fim de 47 anos de Independência e 20 anos de Paz, já deveríamos ter aprendido algumas lições.
