A relativa abertura política que se conheceu a partir de 1991 permitiu que os restos mortais do Cónego Manuel regressassem a Angola por iniciativa da ACA- Associação Cívica Angolana, a primeira ONG angolana dedicada aos direitos humanos e cidadania, prematuramente desaparecida. O seu Presidente, Joaquim Pinto de Andrade, igualmente esquecido pela História, e consequentemente pelos jovens de hoje, escreveu então, a propósito da transladação, uma evocação da qual me parece deverem ser retidas algumas passagens.

"Mais do que nunca, é preciso que os angolanos percorram caminhos de reencontro, de reconciliação e de paz, parem de se destruir, deponham as armas, desçam às fontes do moderno nacionalismo pan-angolano e aprendam com os nossos maiores as grandes lições de patriotismo e unidade nacional. ...Na diversidade e pluralidade das nossas escolhas políticas, impõe-se indeclinavelmente o dever de olhar o interesse nacional com olhos convergentes. ... É na vontade, na ânsia e na sofreguidão do poder que está a raiz de todas as opressões. Manuel das Neves ensinou-nos que a política é, antes de tudo, serviço pelo bem comum da pátria. ... Não basta evocar respeitosamente o passado; é preciso voltarmo-nos para o futuro com olhar prospectivo. A história é ... aquele ser bifronte, que tem uma das faces a olhar o passado e a outra contemplando o futuro. E o futuro, meus senhores, é a juventude. É preciso responder ao olhar interrogativo das crianças da rua, à ansiedade dos jovens, à sua sede de segurança, de justiça, de reconciliação, de amor e de paz. A exemplo do Cónego Manuel das Neves, que soube congregar vontades, esclarecer consciências, mobilizar sectores da nossa população para o cumprimento do dever maior da luta pela independência nacional, aceitemos também nós o desafio do presente, que é o da reconciliação nacional e da paz, o da reconstrução material e moral da Nação, o da reparação do tecido social esfarrapado. Preparemos e garantamos um futuro menos doloroso para os nossos filhos..."

Estas sábias palavras de Joaquim Pinto de Andrade adequam-se totalmente aos tempos que vivemos. Apesar de já não estarmos em guerra, tudo deveremos fazer para mantermos a paz, esse bem precioso que mantemos há quase 20 anos, quase igualando o período mais longo (1941-1961) sem conflitos armados desde o início do século XX. O antigo Presidente de Honra do MPLA terá cometido alguns erros ao longo do seu percurso político (quem não os cometeu?), mas o balanço tem de ser positivo, não apenas pelo seu papel na luta pela independência, que lhe valeram 14 anos consecutivos de prisões e residência vigiada em Portugal e S. Tomé e Príncipe.

Joaquim Pinto de Andrade não foi ouvido em 1994, nem nunca na Angola independente. Nem ele nem outras personalidades da Sociedade Civil, porque, regra geral, os diferentes poderes em Angola não têm cultura de ouvir vozes dissonantes. E todos sabemos o que se passou desde 1994 até 2002. Como sabemos o que se passou depois e a perplexidade que desde então tem caracterizado a nossa governação.

Assistimos nos últimos tempos a uma subida da temperatura na luta e na intolerância política que se afigura perigosa. Com expectativa verificamos nas últimas semanas algumas mudanças que podem ser interpretadas como um pequeno recuo na trajectória insensata que se vinha (vem) seguindo de diabolização da oposição, uma prática inadmissível - e pouco inteligente - em democracia. Refiro-me à decisão do Bureau Político do MPLA de recomendar que a próxima aprovação da alteração da legislação fosse feita com base em consensos (mais vale tarde do que nunca), aos apelos ao diálogo por parte da Vice-Presidente do mesmo partido em Ndalatando, e à entrevista (excelente) que o novo Presidente do Bloco Democrático deu à TV Zimbo (que vai mostrando, ainda que a espaços e no meio da intensa propaganda do partido no poder, maior abertura do que a TPA). Nessa mesma linha podemos assinalar actos de governação importantes como o lançamento do Simplifica.0 e a afirmação das transferências sociais monetárias através do Kwenda, entre outros.

Porém, já houve muita "promessa" de mudança e foi vendida muita esperança que depressa se esfumaram. Porque será difícil imaginar uma mudança ou uma inversão da degradação institucional a curto prazo. Esteves Hilário, um insuspeito militante do MPLA, afirmou, numa excelente entrevista ao semanário Expansão na semana passada, que "quando o nível de credibilidade chega tão baixo, todas as instituições são postas em causa". Eu acrescentaria, incluindo as empresas de todas os ramos de actividade.

E é aqui que reside o grande gargalo da governação. Os problemas que estão a colocar os cidadãos quase em desespero nunca poderão ser resolvidos com a insistência na filiação partidária, quer para a admissão ou nomeação, quer para o lançamento de negócios. A comunicação social votou a mostrar um país cor-de-rosa como no tempo de José Eduardo dos Santos, ao contrário do que sucedia nos primeiros tempos do Presidente João Lourenço. Como se não tivessem sido perdidos 573 mil empregos formais em 2020 (dados do INE); não fosse verdade que apenas 52% das empresas do Pólo Industrial de Viana estejam a funcionar (Novo Jornal de 8/7/21) ou que seis em cada dez pessoas não têm água em casa (OMS e UNICEF); ou ainda que se não soubesse que Angola foi incluída entre os 13 piores países do mundo para se viver (Save The Children Fund). Se não se esconde o flagelo da seca ou estiagem, como aconteceu em 2012, ano de eleições, é bom recordar, é porque ele, hoje, não pode ser escondido e até servirá para justificar mais um "desconseguimento", e mais um ano de recessão.

Que país é esse? Perguntou o investigador Alves da Rocha num artigo no jornal Valor Económico. A "resposta" do jurista Benja Satula nas redes socias é dramática, com um extenso rol de "desconseguimentos". Como dramática foi a resposta de uma jovem vendedora do mercado do Katinton, sem máscara, à reportagem da TV Zimbo (13/7/21): "não tenho medo da Covid porque antes da Covid o nosso país já estragou".

A situação é difícil e poderá piorar depois das críticas do FMI, expressas na subida da taxa de juro do BNA em cerca de 30%, o que terá efeitos nefastos nos créditos que têm constituído uma das bandeiras do PRODESI e na vida das pessoas, principalmente as mais pobres.

Nesta situação, e pensando no que acontece na África do Sul e em Moçambique, renovo o apelo aos actores políticos, agora respaldado em Joaquim Pinto de Andrade: reconciliem-se, pensem na juventude e nas crianças e façam um pacto de convivência democrática, antes que seja tarde demais.