Participei, em Fevereiro de 1979, na primeira iniciativa do Presidente Agostinho Neto de conversações secretas com o Governo da África do Sul na altura, primeiro passo, segundo ele, para pôr fim à guerra entre o Governo e a UNITA, integrando uma delegação chefiada por Alexandre Rodrigues (Kito) e França Ndalu. Já referi publicamente a orientação do Presidente na altura, mas, no contexto actual, é importante repeti-lo: "Todos os dias morrem angolanos nesta guerra, não interessa que sejam da UNITA ou do MPLA, e é preciso acabar com isso" (cito de memória). Infelizmente, Neto morreu e o processo foi interrompido, mas isso influenciou o meu modo de encarar a guerra e as nossas guerras. Do mesmo modo, sou, igualmente, contra todo o tipo de violência estrutural e bem cedo simpatizei com o dito de Berthold Brecht num dos seus mais belos poemas: "Do rio que tudo arrasta/se diz que é violento/mas ninguém diz violentas/as margens que o comprimem".

Logo, nos primeiros dias deste ano que parece ter começado mal, a minha amiga Áurea Machado Pereira protagonizou um acto raro de cidadania ao denunciar o péssimo serviço do CETEP - Centro Especializado de Tratamento de Endemias e Pandemias, quer na deslocação de pessoas, chegadas de viagem do exterior, entre o Aeroporto 4 de Fevereiro e o Centro em Calumbo, quer já depois do seu internamento. O CETEP foi inaugurado com pompa e circunstância no passado 11 de Novembro, tendo, na altura, sido desvalorizada a polémica relacionada com o elevado custo do investimento, traduzido na aquisição das muito degradadas construções pré-existentes. Com o seu corajoso acto, a minha amiga, que recusou o tratamento especial que a instituição lhe quis oferecer, conseguiu que as péssimas condições do Centro fossem melhoradas do dia para a noite. Não sei se a melhoria perdurou no tempo. A comunicação social ignorou o caso, que se tornou viral nas redes sociais.

Poucos dias passados, estalou um acontecimento insólito no Hospital Geral de Luanda, com os familiares de uma vítima a contestarem a causa da sua morte por acharem que havia sido por malária, enquanto os médicos afirmavam que havia sido por Covid-19, o que impedia a entrega do cadáver à família. Como resultado da disputa, várias pessoas protagonizaram um acto violento, atirando pedras ao edifício do hospital e aos seguranças. A comunicação social ignorou também o caso, que se tornou viral nas redes sociais.

Ainda não tinham decorrido duas semanas sobre o primeiro episódio, ocorreu na estação televisiva ZAP o despedimento de centenas de trabalhadores, sem que o Executivo tivesse tomado qualquer medida para evitar o que sucedeu. A comunicação social ignorou, igualmente, o caso, que se tornou viral nas redes sociais.

Outros casos de mau serviço por parte da media pública nos últimos tempos poderiam ser citados, como o silêncio sobre a recente manifestação popular no Wako Kungo, sobre a greve dos médicos ou sobre as mortes do médico Sílvio Dala e do jovem estudante Inocêncio de Matos, ocorridas em situações nunca esclarecidas durante duas manifestações.

Que relação pode haver entre estes acontecimentos e os do passado dia 10? Aparentemente nenhum. Porém, não se podem ignorar as múltiplas críticas ao desempenho da comunicação social pública desde o fim da abertura registada após a eleição do Presidente João Lourenço. Ela não informa, não educa, não estimula a pensar, não promove o diálogo, o debate e a cidadania, enfim, não cumpre o seu papel. As queixas são mais do que muitas, talvez se tenha atingido o mais baixo nível de sempre desde a nossa independência.

Se as televisões e as rádios tivessem acompanhado a evolução dos acontecimentos durante aquele fim-de-semana, se tivessem dado voz aos grevistas, como era a sua obrigação em termos de serviço público, possivelmente a desordem não teria acontecido. Os taxistas teriam tido oportunidade de interagir à luz do dia e de negociar com as instituições públicas, apesar das conhecidas deficiências destas em matéria de negociação, dado o vício recorrente de considerarem os cidadãos comuns como súbditos. Esta é uma primeira lição que deve ser tirada destes acontecimentos

Dela decorre uma segunda lição. Tratar os taxistas como se faz nos países mais avançados não parece aconselhável, tanto pela função de serviço colectivo, como pela informalidade que o caracteriza. Luanda não pode tentar resolver o problema da mobilidade com o metro de superfície nem com autocarros articulados, pois faltam infra-estruturas, organização e disciplina para tal. Não se aprendeu com o passado, incluindo a experiência do Novo Aeroporto, que começou a ser construído há mais de 15 anos. Esta seria uma boa ocasião para se discutir a questão dos transportes e da mobilidade da população na cidade de Luanda com base na nossa realidade humana, cultural e material.

O efeito dessa actuação da comunicação social sobre uma parte da população, associado ao comportamento de pessoas ligadas ao poder, que fazem demonstrações insultuosas e provocatórias de novo-riquismo, é o crescimento dos ressentimentos e da intolerância, que sobem à medida que sobe a temperatura política - e pode atingir níveis muito perigosos. Em ano que se prevê agitado por causa das eleições, deve imperar a serenidade e o bom senso. Cabe a quem exerce o poder de Estado avaliar a situação e tomar as medidas pertinentes, que não podem ser musculadas, mas de mediação e apaziguamento, actuando com independência para julgar com independência. Não se pode esquecer que essa parte da população está a levar uma vida cada vez mais insuportável, o que a torna vulnerável e receptiva a diferentes tipos de acenos. Esta é uma terceira lição a tirar destes tristes acontecimentos.

Como dizia alguém, houve uma decisão de comunhão de bens por altura do casamento que representou o abraço da paz e da reconciliação. Daí que não deva haver lugar na comunicação social para quem advogue a volta ao passado do qual ninguém tem saudades. Se há alguém a violar a paz, por actos, palavras ou intenções, que se deixe aos órgãos de justiça a responsabilidade de actuar e seja publicitada a decisão de modo convincente, sem alarmismos. Agindo como age, sonegando o acesso por parte de importantes segmentos da sociedade e inflamando situações de tensão e conflito, a comunicação social dá mostras de parcialidade intolerável e contribui para o crescente mal-estar.

Por todas estas razões, não me tenho cansado de apelar para a necessidade de serem encontradas soluções consensuais, na diversidade e pluralidade das escolhas políticas de cada um, visando a reconciliação nacional, a paz e a reconstrução do tecido social e material, e para que possamos garantir aos nossos filhos um futuro mais tranquilo e venturoso. Não esperemos pelo pior para isso acontecer. Temos necessidade urgente de um pacto de convivência democrática, pois Angola tem de melhorar, porque já não pode piorar.