Decidi escrever e partilhar convosco estas palavras, porque se trata de uma guerra com grandes especificidades e com alguma obscuridade à mistura.
Sucintamente, contextualizando, o exército etíope decidiu organizar uma investida militar, sobre as forças da Frente de Libertação Popular Tigray (TPLF), na região do Tigray, no norte da Etiópia. Segundo as fontes federais, este movimento/invasão à região sucedeu-se depois de vários meses de tensão política e militar e teve como pretexto a "libertação do povo do Tigray".
Para o leitor que não está tão familiarizado com a dinâmica politico-militarizada do país localizado no Corno de África, a TPLF, partido que se baseia em princípios ideológicos marxistas-leninistas, teve sempre um papel político muito influente na região, inclusive, governou-a durante muitos anos. Não obstante, a situação mudou com a nomeação de Abiy Ahmed Ali enquanto primeiro-ministro etíope. Sim, é normal que o leitor reconheça este nome - Ali foi o vencedor do prémio Nobel da Paz, em 2019.
Voltando ao mais importante - a vida e o bem-estar das pessoas das 6 milhões de pessoas que habitam esta região (e as outras tantas que sofrem, direta ou indiretamente, com estes acontecimentos) -, este conflito, para além de já ter levado 60 mil refugiados para o Sudão (número está a aumentar de dia para dia), pôs a nu, outra vez, as fragilidades e incapacidades da ONGs de ajuda humanitária que, por muito que tentem fazer algo, não conseguem agir, visto que as condições exógenas à sua ação não o permite. Por essa razão, pessoas passam fome, não têm medicamentos, não têm dinheiro (os bancos encontram-se fechados) e veem as suas casas a serem invadidas, servindo as mesmas de acessórios num cenário de guerra sangrento e tenebroso.
Concomitantemente, a situação é também algo cinzenta aos olhos da sociedade civil, visto que, à semelhança das barreiras colocadas à ajuda humanitária, também os media internacionais têm sentido dificuldades no acesso à região, resultado de uma estratégia protagonizada por parte das autoridades federais etíopes, que têm receio da exposição mediática do conflito e das repercussões da mesma.
Numa luta de vitória platónicas, denegrindo a imagem do lado inimigo, esta guerra, que já dura há uns meses (desde novembro do ano passado), tem tido contornos bastante alarmantes, numa zona onde predomina a instabilidade e a insegurança - o Chifre de África. As (milhares) mortes são cada vez mais - e não vão parar de aumentar, tal é o extremo da situação -, sem que esteja à vista um cessar-fogo ou um apaziguamento da situação. Como parte da brutalidade diariamente vivida na região, sucedem-se os constantes relatos de violações sexuais.
Uma situação que é preciso realçar, para que os leitores percebam a sua complexidade, diz respeito à entrada em cena de um (surpreendente, digo eu) aliado do governo de Addis Abeb. Como referi anteriormente, Abiy Ahmed Ali foi galardoado com o Prémio Nobel da Paz, em 2019. Esta conquista deve-se ao facto de Ali ter conseguido por fim a uma guerra que durava há 20 anos, entre Etiópia e Eritreia. Ora, quem se juntou a este conflito, no combate às forças de Tigray, foi... a Eritreia, considerado por muitos como um dos países mais misteriosos do mundo. Aliás, grande parte dos relatos de guerra mencionam um inimigo comum: as forças militares eritreias. Apesar desta constatação, também os campos de refugiados eritreus, que se encontram presentes na região há vários anos, têm sofrido ataques. As condições já lastimáveis, onde estas pessoas (sobre)vivem, são, atualmente, desumanas, não havendo qualquer tipo de condições.
Todas estas parcelas desta longa e complexa equação levam-nos a uma grande e importante questão: terá este conflito fundamentos políticos? Ou, porventura, será mais um - permitam-me a expressão - "episódio" de um cruel e hediondo conflito étnico?
Sinceramente, é uma pergunta à qual não tenho uma resposta concreta. Os factos que temos são ambíguos e pouco confiáveis, muito por culpa da elite governativa etíope. Contudo, podemos tentar fazer um paralelismo, ainda que com muitas diferenças. O conflito no Myanmar, antiga Birmânia, começou porque, alegadamente, os rohingya, minoria muçulmana presente no norte deste país budista (liderado por Suu Kyi, também ela Nobel da Paz), estavam a criar uma enorme despesa ao Estado e a competir pelos poucos trabalhos existentes. Aliado a isto, a islamofobia presente na sociedade birmanesa pressionou as forças políticas a agirem e a criarem atritos com os militares da minoria residente de Rakhine.
Apesar desta comparação, há que entender que os contextos históricos são bastante distintos, para além do enquadramento e conjuntura territorial. O Chifre de África possui caraterísticas muito específicas e as guerras são uma constante - guerras essas que se ampliam a um panorama bem mais abrangente, percorrendo várias regiões de África.
Não me parece que o conflito tenha um fim à vista. Pelo menos um fim minimamente aceitável, onde as três - quatro, a contar com o Sudão enquanto país de acolhimento de refugiados de Tigray -, forças zelassem pelo diminuir do sofrimento e das atrocidades cometidas.
Os Estados Unidos, por exemplo, com esta nova política externa mais atenta aos vários cantos do mundo, já se manifestaram e pediram o cessar-fogo e a retirada das forças eritreias. Urgem os apelos da ACNUR, Médicos Sem Fronteiras ou Cruz Vermelha. Relatórios de associações independentes reiteram que a situação está descontrolada e pode ainda se agravar e ultrapassar o domínio fronteiriço. A ONU fala em "crimes contra a humanidade".
O mundo está de olhos postos na pandemia (e bem), mas há muitas outras "pandemias" que continuam e continuarão ativas, muitas delas à espera de uma pequena acendalha para construírem um rastro de desumanidade. Estas "pandemias" não se resolvem com a ciência; resolvem-se com política/diplomacia e, natural e consequentemente, com ações.