O Manifesto de 1956 tem um conteúdo e uma história concretos. Não devia, pois, ser reivindicado abusivamente por quem o renunciou nas suas opções políticas, económicas e sociais, colocando-se nas antípodas dos seus valores e princípios. Aqueles que representam actualmente o endocolonialismo, a predação e a repressão das liberdades deviam ter o pudor de não o reivindicar.

A história do Manifesto de 1956

Depois de muitos anos de militância político-cultural, Viriato da Cruz e seu grupo decidem "entrar de rijo" e não continuar a luta apenas pela ponta da caneta, como dizia António Jacinto, aludindo ao movimento político-cultural que impulsionavam, desde 1948. Em meados de 1955, Viriato da Cruz (VC) escreveu um estudo sobre "A industrialização de Angola e a situação da nova classe operária" que serviu de documento de trabalho para as duas reuniões preparatórias, anteriores à da proclamação clandestina do Partido Comunista de Angola (PCA), a 12 de Novembro de 1955. As discussões havidas entre os fundadores do partido (VC, Ilídio Machado, Mário António e António Jacinto) foram feitas em torno da "necessidade e (d)as possibilidades de fundação de um Partido progressista", ao mesmo tempo, de classe e nacionalista, "combatente pela causa da libertação das massas trabalhadoras e do povo angolano".

Mas, perante dificuldade de crescimento do partido, devido alguma relutância encontrada na aceitação da vanguarda da luta de classes, "marxista-leninista", o grupo põe um maior acento na questão nacional e decide-se por uma mudança táctica: o partido passava a estar diluído em outras organizações, dirigidas por eles, sem usar a sigla, nem falar em comunismo, para não afastar os nacionalistas "que tinha uma certa resistência à palavra comunismo". Fundam então o Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola (PLUAA), "um partido alargado, um partido não comunista", mas entendido como "uma organização de massas, que o Partido Comunista existente controlaria e a pessoa que ficou encarregada desse controlo foi Ilídio Machado, pela sua posição na Liga Nacional Africana".

Nesta nova organização aparecem também como fundadores ou integrantes Liceu Vieira Dias, Francisco Machado, Germano Gomes, Manuel dos Santos (Capicua), Noé Saúde, Deolinda Rodrigues, Manuel Bento, Adriano Sebastião, Domingos António Lopes, Alexandre Agostinho, António Diogo da Silva, Matias Miguéis, considerado um marxista que fazia parte do círculo de influência de VC, desde 1951-1952, assim como Amílcar Cabral que nesse período se encontrava em Angola e também fazia parte desse círculo de pensamento e acção e tantos outros. Adriano Sebastião fala do seu encontro com o nacionalista guineense, em Cacuaco, a quem informou da actividade política clandestina que as células do PLUAA/(PCA) desenvolviam naquela localidade, nomeadamente com os pescadores indígenas na Cooperativa dos Pescadores de Cacuaco que foi constituída por orientação directa de Mário António e António Jacinto que se deslocaram diversas vezes àquela localidade.

Na transição do PCA para o PLUAA, VC escreve o "Manifesto de 1956". A África estava então em marcha para a sua libertação. E a ideia que o grupo tinha dessa marcha vinha-lhes já

do movimento anticolonial afro-asiático, materializado na Conferência de Bandung (1955), cujos princípios adoptaram na acta de fundação do PCA. Mas, perante os novos desenvolvimentos, nomeadamente as independências da Tunísia, de Marrocos e do Sudão, a publicação do Manifesto da "Consciência Africana" e o contra-manifesto da ABAKO, no vizinho Congo-Léopoldville, reforça-se "a convicção de que a África tinha entrado irreversivelmente na era da independência".

E, neste espírito, a ideia de autonomia e de personalidade política própria, que já havia inspirado a criação do PCA, determina o entendimento de que "as massas africanas" não "são a grande reserva das massas laboriosas da metrópole", como dizia Marx, mas apresentam-se como actores do seu destino, que assumem o movimento histórico por si próprias e se tornam parte da luta geral dos trabalhadores contra o imperialismo, no caso vertente, contra o colonialismo português. Nesse sentido, em 1957, o grupo promove o surgimento de outras organizações frentistas, como foi o caso emblemático do Movimento para a Independência de Angola (MIA), sob liderança de Ilídio Machado, a quem cabe "o mérito do prosseguimento da luta clandestina". Ilídio Machado foi, como dizia Germano Gomes, "a aranha que ia construindo a teia", desde as "primeiras reuniões em casa dele" e, significativamente, nos meios clandestinos, continuou a usar o seu pseudónimo dos tempos da proclamação do PCA: "Paulo Costa". Por seu lado, António Jacinto que teria ido para a sombra, aparece ligado ao Movimento Nacional de Libertação de Angola (MNLA) e ao segundo PCA, desta vez fundado com a participação de "comunistas portugueses" e de angolanos, da nova geração1 que prontamente recusam a sua subordinação ao PCP.

Em finais de 1957, o "grupo motor" do interior fica sem Viriato da Cruz e sem Matias Miguéis, quando estes, procurando escapar à uma prisão que poderia ser eminente, partem para o exterior: Matias Miguéis estabelece-se em Ponta Negra (Congo Brazzaville) e Viriato da Cruz, fazendo trânsito por Lisboa, vai juntar-se ao núcleo de Paris, encabeçado por Mário Pinto de Andrade, que já se encontrava aí desde 1954, juntamente com Marcelino dos Santos (Moçambique) que, tendo abandonado Lisboa, em 1951, se instalou primeiro em Grenoble, e Guilherme do Espírito Santo (S. Tomé e Príncipe). Esse grupo de Paris será engrossado mais tarde por outros, quando Viriato Cruz se estabeleceu na Alemanha. Em Lisboa permaneciam Agostinho Neto, Lúcio Lara, Amílcar Cabral (Guiné-Bissau), Noémia de Sousa (Moçambique) e outros.

Ao saírem do país já havia orientações para os militantes destacados do "movimento", no sentido de se trabalhar para a "unificação" das organizações existentes ou a existir, através da coordenação de um "sector central". Liceu Vieira Dias, a quem foi dado o encargo de concretizar este desiderato, põe-se em contacto com Belarmino Van-Dúnem, do Movimento de Libertação Nacional, conhecido por grupo ELA (Exército de Libertação de Angola). Em verdade, no processo judicial deste grupo se diz também que "Mendes de Carvalho falou ao Benge da sugestão do Figueiredo da criação do "sector central" que coordenasse a acção de todos os movimentos separatistas". E refere-se que tudo terá começado com o encontro de Ilídio Machado com Joaquim Figueiredo, tendo-lhe aquele entregue um questionário sobre "a fusão de todos os movimentos libertadores de Angola", através da criação do dito "sector central" que seria a direcção federativa de todas as organizações nacionalistas existentes.

Antes, já o Manifesto de 1956 tinha sido enviado para o núcleo de Lisboa e transitado para Paris e outras capitais europeias entre os documentos de Viriato da Cruz. E, apesar de a sua letra permanecer latente e não ter sido assumido como texto fundador, o seu espírito inspirava a acção dos vários núcleos do MAC e outras organizações do interior, mais tardias, como o MINA (1959). Em verdade, todas as organizações ulteriores ao PCA foram criadas à luz dos mesmos princípios, sendo esta preocupação também enfatizada, do mesmo modo, no Manifesto do MAC.

Em finais de Dezembro de 1959, a sua letra vai ser recuperada para dar conteúdo material e crismar uma sigla: MPLA, a partir da ideia de que era preciso formar o "mais amplo movimento popular de libertação de Angola", formado por todas "as forças, correntes e tendências contrárias ao imperialismo", constituídas em "frente popular geral", através de "todas as alianças possíveis" contra o imperialismo; desde o núcleo familiar, "em torno dos seus interesses mais sentidos, imediatos e do dia-a-dia", até a "aliança de todo o continente africano".

O conteúdo revolucionário do "Manifesto de 1956"

O Manifesto de 1956 - um documento unanimemente reconhecido como notável - faz então uma análise socio-histórica da exploração do país pelo imperialismo, através da mediação do colonialismo português. Faz também a denúncia da falta das "liberdades de pensamento, de consciência, de opinião, de associação, de reunião, o que freia o desenvolvimento de toda actividade intelectual, criadora [e] profissional". O manifesto sinaliza também um duplo facto: primeiro, o colonialismo português domina então "a vida económica, social, política, cultural e privada", humilhando os angolanos como "indivíduos e como povo"; segundo, há um agravamento da opressão colonialista, pela entrada em Angola "da dominação do capital financeiro, dos monopólios e dos trusts europeus e norte-americanos". Viriato da Cruz, numa fina abordagem de cariz psicanalítico dos mecanismos de dominação baseada no rebaixamento humano dos africanos e da afirmação de uma pretensa superioridade dos colonos em relação às populações locais, ressalta a ideia de que "a opressão colonial esta[va] na base de todos os fracassos" colectivos ou individuais e que enquanto esta permanecesse os fracassos não poderiam desaparecer, pois "o colonialismo inoculou, em todo o organismo de Angola, o micróbio da ruína, do ódio, do atraso, da miséria, do obscurantismo, da reacção". Esse facto, "contrário aos supremos interesses do povo angolano", ao seu "rápido e livre progresso económico", determina a necessidade da "mobilização e luta" para todo o povo angolano. VC traça a linha orientadora da luta nacionalista revolucionária e faz a enumeração de princípios que deveriam orientar essa luta, nomeadamente a solidariedade, cuja base é a tradicional fraternidade africana. Uma luta a ser levada "em todas as frentes e em todas as condições", para "tornar Angola um Estado independente" e instaurar "um governo angolano democrático e popular".

"A independência da Pátria" é canonizada como uma necessidade histórica (política, económica, social, cultural e psicológica), como o objectivo essencial da luta, do qual os angolanos de todos extractos sociais (trabalhadores, camponeses e camadas médias) não se deviam desviar [e], mesmo que o governo colonial promovesse reformas, só havia "um caminho para o povo angolano se libertar: o da luta revolucionária". Assim, era preciso dar a tudo um carácter político e fazer das lutas reivindicativas - pela valorização da língua, "pela instrução, pela cultura, pelo desporto, por todos os interesses dos homens" (lutas que já se vinham desenvolvendo no seio das associações, igrejas, clubes, outras agremiações ou individualmente) - meios "ao serviço da luta pela independência".

O Manifesto de 1956 indica a firme convicção de que o "colonialismo não cai[ria] sem luta": uma "luta ampla de frente popular geral, da qual participarão todas as forças, correntes e tendências contrárias ao imperialismo", formado pela "multiplicação por toda Angola de organizações patrióticas". Mas esta luta não devia ser vista como simples luta de libertação nacional, pois integrava a "frente dos povos africanos e asiáticos (mais de 80 por cento da população mundial) contra o imperialismo". E sendo "os povos coloniais oprimidos" aliados naturais das "massas trabalhadoras das metrópoles", essa devia transformar-se numa "frente mundial contra os exploradores das metrópoles e das colónias". Desde cedo esta solidariedade internacional é assumida pelo PCA, que já havia adoptado os princípios da "histórica e frutuosa" conferência de Bandung (1955), inscrevendo-se assim na ampla frente afro-asiática

de libertação nacional, da mesma maneira que o Manifesto de 1956 considera-o como facto histórico de grande importância para a luta dos povos contra o colonialismo e o imperialismo.

Essa orientação revolucionária para a luta contra o colonialismo e o imperialismo será reafirmada, no mesmo espírito, no Manifesto do MAC. Em ambos manifestos, o colonialismo aparece como uma estrutura política e administrativa que organiza a dominação do povo e a exploração de um país (mais do que um território) pela repressão (gradual) segundo uma hierarquização da sociedade, quer social, quer racial. O colonialismo é "o conjunto de todos os organismos" mas também de "todos os indivíduos interessados na manutenção do actual estado de coisas em Angola". O Manifesto do MAC, na sua versão de 1960, marca uma radicalização nos métodos de luta e vai influenciar todos os movimentos de libertação nacional de cariz revolucionário em Angola, em Moçambique, Guiné-Bissau (e Cabo Verde) e São Tomé e Príncipe. A importância do MAC foi destacada por vários dirigentes nacionalistas africanos, nomeadamente Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Marcelino dos Santos.

Agostinho Neto, no discurso de proclamação da independência, citou o Manifesto de 1956, inscrevendo aquele acto fundador na continuação deste documento, mas teve que o rasurar, no que se refere ao pluralismo político aí afirmado. Hoje, o poder endocolonial autoritário prossegue a fraude ao reivindicar a condição de continuador de uma obra que foi edificada para lutar contra tudo o que ele representa: a exploração das massas trabalhadoras, o coarctar das liberdades, a miséria, a falta de assistência médico-sanitária, a não realização individual da pessoa e carência do acesso à cultura.

O Manifesto de 1956, nas suas linhas de força, não perdeu actualidade e continuará letra viva enquanto a libertação nacional não for completamente realizada e não se realizarem a libertação social e psicológica que eram tidas, a par da libertação política, como componentes essenciais da luta pela independência.

Nota: Dado tratar-se de um trabalho de investigação, aconselhamos os interessados a consultarem o link que juntamos, onde poderão encontrar a matéria aqui abordada mais desenvolvida www.ceic-ucan.org/?page_id=74.