Por aqui sabemos o que é ser vítima da exposição e da acção da indústria militar como fábrica da morte, que, entre nós, durante mais de uma trintena de anos, deixou um rasto de desgraças sem fim.
Por aqui, sabemos quão precioso é viver em paz e abraçar os desafios do multipartidarismo. Sabemos quão, do ponto de vista político, é imperativo restaurarmos a confiança para podermos construir com tranquilidade e na diferença o edifício da democracia.
É por isso, que agora, em tempo de paz, do que se fala por aqui é do futuro eleitoral que, de forma titubeante, está à porta. Do futuro de um País em que - ganhe quem ganhar as eleições - depois de Agosto, nada será como antes. De um País que - depois de Agosto - perca quem perder as eleições - conhecerá indubitavelmente um novo mundo.
Por aqui, do que não deixamos de falar é dos temores que, fomentados por círculos extremistas dos nossos dois principais partidos políticos, já se desenham em torno do próximo pleito.
Do que haveremos de continuar a falar é da política de exclusão e de discriminação de toda a ordem contra a qual todos somos poucos para a eliminar da nossa sociedade.
Do que insistiremos em falar é de partidos políticos - MPLA e UNITA - que ainda não se convenceram de que, em vez de inimigos mortais, devem comportar-se como simples adversários.
Da UNITA que esgrime como armas contra o MPLA o fantasma da fraude eleitoral, a fome, a miséria, o desemprego, a incompetência e a corrupção, o uso desproporcional dos meios de comunicação social públicos, a tentativa de monopólio da vida pública e a instrumentalização dos órgãos de justiça.
Do MPLA que aponta como armas contra a UNITA a ameaça à estabilidade através do fomento de novas insurreições populares, o incitamento ao espírito de vingança, a tentativa de recurso a velhos ódios para lançar lenha na fogueira e a ausência de ideias de governação.
O que conforta o MPLA é o novo potencial de crescimento económico à vista, a eficácia no combate à pandemia da Covid-19, o nascimento de novos e promissores investimentos no sector petrolífero e a gestão descentralizada dos activos do sector mineiro.
E ainda a notável redução da diferença da taxa de câmbio praticada no mercado oficial e a praticada no mercado paralelo, levada a cabo pelo BNA, a estratégia de recuperação de bens e de capitais saídos ilicitamente do País no âmbito do combate à corrupção, e a construção de grandes e modernos equipamentos sociais.
O que conforta a UNITA é o descontentamento popular, a vaga de protestos de vária ordem e a onda de greves que ameaça fazer tremer a estabilidade social na mesma proporção que vai aumentando o tom das críticas à governação.
Enterrado o machado da guerra, o que depois das eleições o Parlamento espera dos dois partidos é que Angola tenha como únicos inimigos da democracia e do progresso a ausência de liberdades, a mentira, a corrupção, a incompetência, a falta de qualidade de vida das pessoas e a medíocre prestação dos serviços públicos.
E espera ainda dispor de um sistema de freios e contra-freios para travar as tendências autoritárias, acabar com a irresponsabilidade política, eliminar a ineficácia da justiça e a pôr fim à opacidade existente na relação entre o Estado e os cidadãos.
Mas, entre estes dois mundos habitados pelos nossos dois principais partidos, a quatro meses das eleições, continua a persistir um mundo ensombrado por infindáveis dúvidas que os angolanos, de uma vez por todas, exigem ver desfeitas.
Não podendo haver em Agosto dois vencedores das eleições, mas estando subjacentes em determinados círculos extremistas de um e do outro lado intenções obscuras, "o dia seguinte" ao anúncio do resultado do pleito continua a ser uma incógnita.
Desde logo, porque ninguém tem como garantido que quem perder as eleições fará uma oposição firme, mas politicamente leal e democraticamente civilizada.
Mas, também, porque ninguém tem como adquirido que quem ganhar as eleições não espezinhará o adversário, tratando-o com a dignidade política que exigem as verdadeiras democracias.
O que se questiona, por isso, é o futuro de partidos políticos que, engalfinhados numa guerra de acusações e de contra-acusações, parecem não ter interiorizado que a Angola de 1992 já não existe.
Partidos que parecem manter-se prisioneiros da paisagem política, económica e social de 2012. Partidos que parecem não ter ainda percebido que os eleitores e as preocupações por eles levantadas em 2017 pouco têm a ver com as preocupações que estão a ser espoletadas agora em 2022.
Partidos que são vítimas do atraso do pensamento político estruturado das suas elites. Partidos que exibem uma confrangedora resistência à modernização orgânica e ao desempoeiramento político para poderem enfrentar, com outra visão e agilidade mental, as novas dinâmicas da sociedade.
Porquê?
Porque não querem pôr termo à relação de clientelismo que historicamente domina o jogo de espelhos reinante nas suas capelas partidárias.
Porque não querem aceitar que, predominando na generalidade das suas fileiras o espírito de vassalagem da base ao topo, tudo por lá depende da vontade dos líderes que, em vez de lealdade crítica, preferem a fidelidade cega, absoluta e irracional.
Com os partidos chamados a enfrentar no futuro estes desafios internos, o olhar crítico dos cidadãos vira-se agora para os testes pré e pós-eleitorais a que as suas lideranças serão submetidas para a construção de um clima de transição alicerçado na tolerância, na concórdia mútua e no respeito pela diferença democrática.
Vira-se para a necessidade de abrirmos as nossas persianas à nossa região e de nos inspirarmos também na luz da pluralidade política que tem sido irradiada por países como a África do Sul, o Botswana, a Namíbia e agora a Zâmbia.
Sem esquecer que, fora da África Austral, se assiste igualmente a uma supremacia da corrente democrática sobre as tentações totalitárias.
É essa corrente democrática que, sem a perfeição que desejaríamos, mas também sem sobressaltos, se está a consolidar em países como Cabo-Verde, Ilhas Maurícias, Senegal ou Ghana.
Ao olhar de forma desprezível para estas saudáveis experiências africanas, as nossas elites políticas parecem manter-se atadas a uma patológica aversão à necessidade de "aprenderem a aprender" com quem tem lições a dar-nos para afastarmos do nosso caminho as "minas e armadilhas" que nos rodeiam e para perseguirmos o aprofundamento do nosso sistema democrático.
Um desafio que, não exigindo o céu e a terra, exige que olhemos para o nosso universo regional em África e que, ao identificarmo-nos com a "Declaração de princípios para a condução de eleições democráticas" subscrita pelos países da SADC, saibamos, entre outros postulados, assegurar o seguinte:
1 - Plena participação dos cidadãos no processo político;
2 - Liberdade de associação;
3 - Tolerância política;
4 - Oportunidades iguais para todos os partidos políticos na comunicação social pública;
5 - Oportunidades iguais para votar e ser eleito;
6 - Independência dos Órgãos judiciais e Imparcialidade das instituições eleitorais;
7 - Medidas e precauções para prevenir a ocorrência de fraude, falsificação ou qualquer outra prática ilegal durante todo o processo eleitoral com o objectivo de preservar a paz e a segurança;
8 - Disponibilização de toda a logística e todos os recursos para a realização das eleições;
9 - Transparência e a integridade de todo o processo eleitoral, facilitando a deslocação de todos os partidos políticos e candidatos individuais para as mesas de voto e de contagem de votos;
10 - Aceitação e respeito, por parte dos partidos políticos, de que os resultados anunciados pelas autoridades Eleitorais Nacionais, de acordo com a lei do país, são livres e justas;
11 - Impugnação dos resultados eleitorais, nos termos da lei do país.
Sendo "os direitos humanos, a democracia e o Estado de Direito" princípios sagrados na condução da nossa vida pública, o desafio está lançado e coloca agora na agenda de prioridades dos nossos partidos "o reforço da transparência e da credibilidade das eleições, o funcionamento de governos democráticos e a aceitação dos resultados por todos os concorrentes".
Sendo a observância destes princípios crucial para um saudável processo de transição política em Angola, a bola está agora no campo dos partidos.
E também na firmeza de princípios dos seus líderes para que amanhã ninguém diga que, antes de nascer, a democracia em Angola já estava morta...