Este novo quadro epidemiológico coloca a necessidade de refletirmos sobre o fim ou não da Situação de Calamidade Pública que, com o Estado de Emergência, tanto condicionou as nossas vidas, a vários níveis. Devemos, também, ponderar sobre que medidas residuais devem ainda ser mantidas, com vista a evitar desagradáveis surpresas, pois um imprevisto retorno poderá acarretar imprevisíveis consequências que podem ser evitadas caso esta reflexão ponderada for tomada com acuidade.
Fazer esta reflexão, além de uma leitura acurada da fotografia epidemiológica actual, implica fazer um flash back atento do percurso da pandemia no País, nas suas diferentes nuances e uma análise aturada e desapaixonada das medidas que constituíram a resposta de Angola à pandemia, sua pertinência, eficácia, bem como os efeitos perversos e colaterais. É esta análise que nos vai permitir concluir onde é que estivemos bem e onde estivemos mal e daí desenhar, com clareza, o quadro pós-pandemia em Angola. É esta análise, ainda sumária, que nos propomos fazer neste artigo que pretende, por outro lado, contribuir com ideias, ainda que difusas, para preenchermos o puzzle complexo da pós-pandemia no nosso País.
Os primeiros casos de Covid-19 foram registados oficialmente em Março de 2020 e foram importados da Europa, Portugal, sobretudo. Os primeiros três casos registados acenderam de imediato o alerta vermelho na Comissão Interministerial criada para o efeito pelo Presidente da República e coordenada pelo ministro de Estado, Chefe da Casa de Segurança (na época). Compreensivelmente, as primeiras medidas foram tomadas um pouco ao acaso, por tentativa e erro, pois, na altura, ainda era escasso o conhecimento sobre a capacidade efectiva de propagação do SARS-Cov2, e as medidas foram sendo tomadas um pouco em função das experiências de surtos anteriores de outras estirpes de coronavírus e das experiências de outros países que iam sendo infectados mundo afora. A China e, posteriormente, a Itália eram os casos destacados então, mas, rapidamente, a doença firmou-se praticamente em todo o mundo como autêntica pandemia, levando a Organização Mundial de Saúde a declarar a Emergência Sanitária Global.
As primeiras medidas tomadas no sentido de conter a pandemia podem ter parecido draconianas se considerarmos apenas o quadro epidemiológico local, mas penso que foram absolutamente necessárias se considerarmos o contexto global prevalecente. O mundo estava à beira do pânico generalizado, lutando
às cegas contra um "inimigo invisível", portanto justificavam-se as acções às apalpadelas e, nalguns casos, quixotescas mesmo, que se foram adoptando para enfrentar a Covid-19. As primeiras medidas consistiram no encerramento de fronteiras, instituição da cerca sanitária nacional e outras cercas sanitárias mais localizadas, com o propósito de impedir uma rápida propagação do vírus para outras províncias, o que poderia comprometer e mesmo levar ao colapso o sistema de saúde, já de si débil na sua capacidade de atendimento. Combinadas a estas medidas, as quarentenas institucionais e, mais raramente domiciliar, assumiram carácter vulgar. Ainda eram poucas as ferramentas disponíveis que permitissem abordar, tecnicamente, o SARS-Cov-2 e, conhecendo-se, pelo menos, o modo de transmissão do vírus, medidas como o uso de máscaras, o distanciamento físico e a higienização frequente das mãos saltaram para o topo da lista de medidas na prevenção individual contra a Covid-19. Faltava apenas o mecanismo de impor o cumprimento coercivo destas medidas, por isso, a 27 de Março de 2015, o Presidente da República, após parecer competente da Assembleia Nacional, decretou o Estado de Emergência de abrangência nacional para permitir a imposição de uma série de medidas restritivas. Ao Estado de Emergência, seguiu-se a Situação de Calamidade Pública, medida mais flexível que abarcava um conjunto de medidas que eram periodicamente revistas em razão da situação epidemiológica, sempre com o propósito de impor restrições que permitissem o internamento de casos confirmados, o isolamento dos contactos, distanciamento físico, prevenir aglomerações que comportassemm riscos acrescidos de contaminação e a adopção de medidas individuais de protecção individual que concorrem para a prevenção colectiva.
Do ponto de vista epidemiológico, a evolução do número de casos respeitou sempre um crescimento aritmético do número de casos, exceptuando alguns períodos críticos em que foi notória uma progressão geométrica como foi, por exemplo, o último pico registado em Dezembro 2021, atribuído à variante Ómicron do SARS-CoV-2, que felizmente não é tão letal quanto à variante selvagem e à delta, que surgiu na sequência de outras variantes que foram surgindo como resultado de mutações que o vírus experimentou à medida que se foi propagando. O número abaixo de 100 mil casos e 1 900 mortes em dois anos ficou significativamente abaixo das previsões apocalípticas feitas para África até por organizações como a OMS. É certo que as medidas adoptadas contribuíram para este crescimento controlado de casos, padrão observado em toda a África Subsariana, à excepção da África do Sul, mas alguns factores que protegeram a população africana duma calamidade ainda maior estarão ainda por descortinar. O certo é que, enquanto as grandes economias como dos EUA, Europa e Ásia (Índia, particularmente) eram fortemente flageladas pelo SARS CoV-2, ameaçando o colapso dos seus poderosos sistemas de saúde, em África a evolução controlada da propagação do vírus oferecia alguma capacidade de resistência aos frágeis sistemas de saúde, o que pode ser considerado o grande paradoxo da Covid-19.
O conjunto de medidas adoptadas como pacote de resposta de Angola à pandemia, de modo geral, justificava-se, mas, em alguns casos, o doseamento destas medidas pecou por excesso. Um exemplo que pode ser apontado é o prolongamento excessivo da cerca sanitária a Luanda, de certo modo ligada à problemática do reconhecimento da circulação comunitária do vírus. A cerca sanitária a Luanda foi correcta e oportunamente concebida como uma forma de impedir a propagação descontrolada do vírus para outros espaços do território. O entendimento tardio deste propósito e, mais uma vez, o reconhecimento da circulação comunitária do vírus nalgumas províncias levaram a uma persistência inapropriada da cerca sanitária a Luanda, com consequências sociais e económicas gravosas que poderiam, perfeitamente, ter sido evitadas.
A nível mundial, a ciência mobilizou-se fortemente para oferecer respostas eficazes ao controlo da pandemia. Os resultados mais salientes deste esforço foram os testes cada vez mais sensíveis e específicos e uma sorte variada de vacinas com reconhecida eficácia e segurança. Estranhamente, um movimento amplo de negação da ciência se ergueu, colocando obstáculos consideráveis na aplicação dos programas de vacinação que se revelaram ferramentas importantes no enfrentamento do vírus SARS-CoV-2.
A Covid-19 foi um verdadeiro abalo sísmico à escala global, que deixou um cortejo de mortes, absolutamente impensável nestes tempos em que a humanidade, sustentada pela ciência, julgava ter alcançado os píncaros do desenvolvimento tecnológico. O impacto da pandemia nas mais diversas esferas da vida foi tremendo. O grande desafio que agora se abre a humanidade é consertar os estragos importantes provocados pela pandemia. A pandemia expôs de maneira cruel que as desigualdades sociais, fruto de uma injusta distribuição das riquezas ao dispor da humanidade constituem fendas que dificultam depois o enfrentamento das desgraças que se abatem sobre todos e cada um dos seres humanos. Por isso, o ideal de liberdade e de igualdade devem ser marcas imanentes no projecto de desenvolvimento sustentável que pretende conduzir a humanidade para o progresso. A ciência destacou-se neste processo como uma arma poderosa para atravessar os "buracos negros" na caminhada para o progresso e atenuar as incertezas que se apresentam como notas patentes em tempos difíceis e, por isso podem parecer estranhas as manifestações, algumas vezes violentas de oposição a ciência, mas também isso deve ser entendido como intrinsecamente humano.
A pandemia do Covid-19 nos interpela a todos, enquanto sociedade humana a um profundo exercício de reflexão sobre o presente, a fim de encontrarmos as melhores soluções e os ajustes atempados na correcção dos efeitos negativos da pandemia, mas também um exercício de reflexão quanto ao futuro que inquestionavelmente vai determinar um novo paradigma que requererá das sociedades tomadas de posição consentâneas. Este exercício de reflexão só pode ser profícuo se exercido no contexto de debate honesto e construtivo que só a democracia proporciona. Por isso é imperativo que a democracia não seja cerceada e o pluralismo seja incentivado a máxima potência para que sejam decantadas as melhores soluções e se desenhe um rumo certo para o país no pós-Covid.n
*Médico, docente universitário na FM-UAN e Deputado a Assembleia Nacional pela UNITA