Se vêem, porque não ajudam a combater ou a denunciar? Por insensibilidade e indiferença ou por desamor ao Povo e ao País? Ou ainda por falta de patriotismo, por egoísmo ou medo? Ou será por acefalia colectiva?
A referida activista, antiga ministra da Educação de Moçambique, viúva de Samora Machel e de Nelson Mandela, esteve em Angola por poucos dias, mas suficientes para mostrar que conhece bem a pobreza que grassa pelo País, contra a qual manifestou a sua indignação.
"O nosso País (Angola) tem um potencial, mas tem níveis de pobreza inaceitáveis", reclamou com firmeza Graça Machel, em Benguela, nas comemorações dos 30 anos do grupo empresarial Carrinho, protótipo da nova oligarquia do MPLA.
Declarações que a empresa anfitriã, a Carrinho, truncou, dentro da lógica de que o mais importante é fazer propaganda a favor do regime e na vã tentativa de evitar que os angolanos soubessem que têm na Mamã Graça (como é carinhosamente tratada na sua Pátria) uma aliada solidária e uma voz com autoridade para se bater contra o seu sofrimento.
Acusando os órgãos e os jornalistas que reportaram essa denúncia de "distorcerem a realidade", a Carrinho teve a desfaçatez de afirmar, em comunicado, que a activista moçambicana "nunca proferiu tal afirmação".
Felizmente, as redes sociais, (ainda) livres do tenebroso lápis azul da censura, semelhante ao da PIDE colonial, divulgaram, nos dias seguintes, áudios e vídeos com a denúncia da Mamã Graça, uma das mais destacadas activistas africanas.
A atitude censuradora da Carinho mostra que a oligarquia, criada à sombra do Poder, é capaz de tudo, inclusive de manipular a opinião pública, para defender a manutenção do status quo, num gesto que significa que se lixe o Povo.
Fazendo jus ao seu papel de defensora da dignidade humana das populações africanas como pressuposto para o desenvolvimento do continente, Graça Machel viu a miséria angolana e, como é seu apanágio, protestou.
Assim sendo, como é que, mesmo depois da denúncia da Mamã Graça, os 124 deputados do MPLA, os pelo menos 80 ministros de Estado, ministros e secretários de Estado, os 54 governadores e vice-governadores provinciais, centenas de administradores municipais, centenas de conselheiros, assessores e acessórios presidenciais, bem como milhares de jornalistas "bem-comportados" se mantêm indiferentes ao sofrimento dos pobres angolanos, a maioria da população do País?
Que se lixe o Povo é a resposta de dirigentes egoístas, politicamente mutilados, que ocupam funções de Estado e partidárias e que apenas se preocupam com o tamanho dos imerecidos privilégios sociais e pecuniários de que beneficiam, única razão da sua ligação à política.
Dias antes, o Presidente do Brasil, Lula da Silva, de visita a Angola, lembrou ao seu anfitrião, João Lourenço, que "muito dinheiro na mão de poucos é concentração de riqueza, mas que pouco dinheiro nas mãos de muitos é distribuição de riqueza", e advertiu que "se a gente não tiver capacidade para se indignar, a gente não muda as desigualdades".
Lamentavelmente, em Angola, os políticos do Poder, insensíveis ao protesto de Graça Machel, mostram que lhes falta capacidade para se indignar e ajudar a combater as desigualdades, os níveis de pobreza inaceitáveis e a miséria.
Estes políticos desvalorizam as denúncias da ex-governante moçambicana que contrastam com as habituais palmadinhas nas costas e elogios que recebem de visitantes europeus, como os portugueses, que, indiferentes à pobreza do País, se centram apenas em interesses pessoais e dos seus países, sobretudo financeiros, numa lógica de manutenção do pacto colonial.
Contrariamente a estes visitantes europeus, Graça Machel coloca-se ao lado do Povo angolano e recusa-se a aceitar que um País com grande potencial, um dos maiores produtores de petróleo de África, com recursos como diamante, ouro, uma bacia hídrica invejável, terras aráveis, população jovem, entre outras valias, tenha essa pobreza tão dolorosa que coloca à margem, na condição de pária, a maioria da população.
O que Graça Machel e Lula da Silva querem dizer é que o caminho destrutivo que está a ser seguido, perante o olhar silencioso dos 697 membros do Comité Central do MPLA (o maior CC do mundo), construtores do modelo político que cria miséria, está errado.
Quando Lula recusa a naturalização da reprodução da pobreza, afirmando: "Não consigo me conformar que é (seja) normal um cidadão nascer pobre, viver pobre e morrer pobre, seus filhos e netos também nascerem pobres", o Poder em Angola com o seu silêncio criminoso está cinicamente a responder: desde que esse cidadão não seja eu, que se lixe o Povo!
Por saberem que "a miséria é a anulação da escolha", como sublinha Joseph Ki-Zerbo, em Para quando África?, Graça e Lula manifestam-se contra a pobreza que, em Angola, deixa mais de quatro milhões de crianças sem escola e mais de 60 por cento dos jovens desempregados, compondo uma espécie de exército de kunangas.
Dizer que se lixe o Povo é ignorar o clamor da maioria da população que sobrevive abaixo do limiar da pobreza, sem água potável, nem luz eléctrica, nem saneamento básico, sem escola para os filhos, num País que vê a taxa de analfabetismo aumentar ao mesmo tempo que assiste ao desinvestimento na educação e na saúde fazer parte do caminho para a reprodução da pobreza.
É também dizer que se lixe o Povo persistir no modelo que atribui a gabinetes políticos irrelevantes, dotação orçamental superior à dos programas de combate à fome que mata diariamente 46 crianças angolanas menores de cinco anos.
Neste tipo de democracia empobrecedora para a maioria, tudo se torna mais cruel e perversamente surrealista, quando, a partir da majestosa cúpula da Assembleia Nacional, se assiste a crianças brincarem nas lixeiras ou nos charcos de água suja, onde os mosquitos dançam com as jingunas e as famílias vivem encurraladas na sanita do esquecimento, valendo para a sua sobrevivência a nobreza imaginativa de quem vive miseravelmente.
Entre esses miseráveis, estão mulheres sem escolhas, às quais a pobreza empurra para a zunga, única via que encontram, fora da criminalidade, para lutarem pela sua sobrevivência e da sua família.
A indignação de Graça Machel é, igualmente, de quem se opõe a aceitar que, enquanto essas mulheres zungueiras se levantam cedo, em busca do sustento, lá longe, nos bancos europeus e nas offshores, dormem os recursos financeiros espoliados ao povo que continua cada vez mais miserável.
Recursos suficientes para impedir que diariamente mulheres, crianças, jovens e idosos da capital, Luanda, se digladiem em contentores nas ruas em busca de lixo para comer, uma imagem que se tornou num triste postal da mais populosa região do País.
Recursos que correspondem a milhões ou biliões de euros ou de dólares indispensáveis para a Educação, Saúde, Cultura, Agricultura e outros sectores vitais para o desenvolvimento humano e para travar a maior crise sócio-económico-financeira da História de Angola.
Quando os milionários e bilionários da classe política, que o sistema criou, se fazem passear pelo mundo nos mais luxuosos aviões e realizam extravagantes (e pimbas!) festas e festanças no estrangeiro, preferencialmente na Europa, à mesma velocidade que as suas políticas causam mortes, estão a dizer que se lixe o Povo.
Por causa da má distribuição da riqueza e dos níveis de pobreza inaceitáveis, os jovens angolanos estão a emigrar em massa, numa fuga para o estrangeiro em busca de liberdade, dignidade e segurança de vida, perante a indiferença de quem detém o Poder que, assim, diz que se lixe o Povo.
Os políticos ambulantes dizem que se lixe o Povo quando passam mais tempo no Dubai, em Paris ou Lisboa que em Angola, em lugares como Botomona, Cuchi, Kirima, Luremo, Kuvelai, Mussende, entre outros.
Mudar isso passa por alterar a forma de pensar e fazer política, bem como perceber a origem das raízes profundas deste esgotado modelo político, ancorado em mercenários da banca, do direito, na cínica cegueira do poder judicial e em marionetas políticas que insistem em desprezar a liberdade, a dignidade, a educação, as artes e a cultura, como vanguarda do desenvolvimento.
E, sobretudo, colocar o Povo no centro da equação.