Nos dias anteriores, o casal não teve a mesma sorte em vender algum dos diversos produtos depois de várias horas abordando pessoas que paravam as suas viaturas no espaço criado à beira da estrada nacional. Por isso, os dois decidiram dormir às seis da tarde para enganar a fome.

"Aqui, na aldeia, está cada vez mais difícil sobreviver. Pode até existir Reservas Estratégicas Alimentares, mas se não tivermos emprego, condições de vender o que produzimos ou dinheiro para comparar os produtos que necessitamos, acabaremos sempre por passar fome e não termos como beneficiar desta importante política criada pelo Estado", narra dona Jacinta Penehafo.

A família do senhor Haitale - uma das um milhão e trezentas pessoas em situação de fome e insegurança alimentar e nutricional, segundo estimativa do mais recente estudo do Programa Alimentar Mundial feito na região- descreve que a fome atravessou a sua história em distintos momentos e que ter comida a um preço acessível é uma incerteza mesmo com os frequentes anúncios relacionados com a queda dos produtos da cesta básica.

Casos como os da família da dona Jacinta revelam bem às quantas andam as capacidades de muitos agregados familiares ou indivíduos para aceder a alimentos através da produção, compra ou até doação. Por isso, eu penso que umas das principais contribuições que as nossas jovens gerações de políticos, governantes, académicos e até activistas cívicos poderiam dar face às dificuldades enfrentadas por famílias como a da dona Jacinta é esforçarem-se para evoluir no pensamento sobre a fome, especificamente sobre as causas.

É chegado o momento de desafiar aquelas abordagens que predominam a nível dos ciclos de tomada de decisão, que tendem a explicar a fome como sendo um problema causado apenas pelo declínio da disponibilidade de alimentos no País. Pensando-se, desta forma, que no caso da dona Jacinta a fome seria o resultado da diminuição da oferta per capita, principalmente devido a uma catástrofe natural como a seca, que reduziu os níveis de produção. Temos de pensar que em Angola existem casos de fome endémica. Esta seria apenas causada pela indisponibilidade de alimentos em quantidade suficiente ou deve-se à subida de preços?

Apesar de hegemónica, eu entendo que há dois problemas com esta abordagem. Em primeiro lugar, porque faz uma estimativa agregada (alimentos per capita), esquece o facto de que a distribuição de alimentos é desigual entre grupos sociais, de modo que a fome e a insegurança alimentar podem ocorrer mesmo que haja alimentos suficientes e robustas reservas alimentares do Estado. Em segundo lugar, situa as causas da fome em factores naturais ou inevitáveis, e não tem em consideração possíveis causas derivadas do sistema socioeconómico, especificamente a pobreza.

Em contraste com esta abordagem, a realidade coloca-nos perante evidências que demostram que as razões que explicam melhor o problema da fome se centraram mais nas diferenças sociais bem conhecidas entre nós, diferenças estas que acabam por se cristalizar em fome e pobreza para muitos e opulência e enriquecimento injusto para uns poucos.

Se analisarmos as várias situações de famílias que padecem de fome ou insegurança alimentar e nutricional em zonas rurais no Norte do País, onde não houve problemas de seca nem redução significativa dos níveis de produção agrícola nos últimos cinco anos, constata-se que a fome naquelas regiões não foi causada pela simples falta de alimentos, até por que muitos dos alimentos comprados e consumidos nas áreas vizinhas na capital das províncias ou do País provêm daquelas regiões.

De facto, em muitas ocasiões, comercializam-se alimentos não devido à necessidade daqueles que mais precisam, mas devido à procura efectiva no mercado por parte daqueles que têm o poder de compra, e estes não são os pobres locais. Por conseguinte, a causa da fome reside antes na incapacidade das famílias pobres em aceder aos alimentos, ou seja, em produzi-los, comprá-los ou obtê-los por outros meios legais.

Como a vida faz a realidade de ensinarmos, muitas vezes as pessoas passam fome não em consequência de não haver alimentos suficientes, mas por não terem poder de compra para adquiri-los. Embora a primeira possa ser uma das causas da segunda, é apenas uma das muitas causas possíveis.

Quero com isto dizer que as capacidades que cada um de nós tem para obter alimentos numa cidade de livre mercado e propriedade privada não depende apenas da disponibilidade deste, porque, para tal, é preciso ter em conta três formas básicas de obtenção de alimentos: através da produção, como no caso dos alimentos produzidos a partir dos recursos produtivos da família; as transacções comerciais, ou seja, a capacidade de comprar alimentos no mercado com dinheiro obtido através de outras actividades; e quando obtidos através do apoio dos familiares, assistência do Estado ou da comunidade.