Numa resolução de 19 pontos, aprovada no final dessa Cimeira, a UA designou as reparações pela escravatura, colonialismo e apartheid, como um projecto importante, a ser desenvolvido pela Comissão Africana, a qual encarregou de apresentar um "documento-quadro estratégico" para a implementação das decisões da Conferência de Accra (Ghana) que criou uma "Frente Unida para fazer avançar a causa da justiça e compensações aos africanos".
O documento, intitulado "Decisão sobre a constituição de uma frente unida para promover a causa da justiça e o pagamento de reparações para os africanos", sublinha as origens pan-africanas profundamente enraizadas da União Africana e sua antecessora, a Organização de Unidade Africana, que incluem os laços históricos, culturais e de sangue que unem o continente africano e a sua diáspora.
Para essa missão, a Cimeira orientou a Comissão a trabalhar em coordenação com os Estados-membros e com instituições como a Comissão e o Tribunal africanos dos Direitos Humanos e dos Povos e a Comissão africana sobre o Direito Internacional.
Antes de apelar a uma maior colaboração entre a Comissão e as Nações Unidas, nomeadamente o Fórum Permanente das Nações Unidas para os Afrodescendentes e o UNICEF, a Cimeira orientou o estabelecimento de contactos com estruturas, sectores e entidades relevantes nos países membros, a fim de reforçar a integração da campanha de reparações a nível nacional.
A citada Conferência de Accra, cujo relatório foi adoptado pela Cimeira da UA, defendeu que o âmbito da reparação deve ir para além das injustiças históricas e abranger também o tecido actual das sociedades de todo o mundo com o objectivo de "promover a compreensão, a reconciliação e uma compensação significativa".
Reconheceu que as formas contemporâneas de discriminação, especialmente, contra as mulheres e os jovens, resultam de políticas discriminatórias e não representativas de longa data, enraizadas no colonialismo, no apartheid e no neo-colonialismo.
Reconheceu ainda que tais políticas discriminatórias continuam a prejudicar o desenvolvimento geral dos antigos países colonizados do Sul Global. Por isso, apelou para a realização de debates políticos sobre reparações, acompanhados de acções que demonstrem uma verdadeira igualdade sócio-política através de uma representação justa das vozes marginalizadas.
Os conferencistas de Accra decidiram criar um Comité de Peritos em Reparações, um Fundo Independente de Reparações, bem como nomear um Enviado Especial para as Reparações.
Em 2022, a Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (CADHP) já tinha sublinhado, em resolução, que a responsabilização e a disponibilização de soluções para crimes históricos em massa, incluindo a escravatura, o comércio e o tráfico de africanos escravizados, o colonialismo e a segregação racial são essenciais para combater o racismo sistémico em curso e para o avanço dos direitos humanos dos africanos e dos afrodescendentes.
Na Conferência de Accra, Adão de Almeida, ministro de Estado de João Lourenço, defendeu a necessidade de os países africanos lançarem uma "Agenda Africana para promover a justiça e o pagamento de reparações decorrentes do colonialismo".
Contrariamente à posição manifestada por Adão de Almeida, em Accra, em Novembro de 2023, em nome do Estado angolano, na semana passada, ao lado de Luís Montenegro, primeiro-ministro de Portugal, antigo colonizador, João Lourenço anunciou que Angola "não vai pedir nunca" reparação a Portugal pela escravatura e colonização.
Lourenço, candidato à liderança da UA em 2025, que subscreveu os documentos da União em Fevereiro último, aparece, cinco meses depois, a manifestar-se contra as decisões africanas subscritas pelo seu próprio Estado.
O actual Presidente do País de onde foram escravizados cerca de seis milhões de pessoas, considera que os colonizadores e escravocratas não têm condições para reparar, indemnizar os países explorados e espoliados e os descendentes das vítimas.
Enquanto, em Accra, o Presidente do Ghana, Nana Akufo-Addo, reivindica a compensação "não como um pedido de caridade", mas uma "exigência legítima de justiça para os descendentes das vítimas do tráfico transatlântico de escravizados", em Luanda, o Chefe de Estado angolano vê nesse pedido uma questão que não faz sentido ser colocada.
Akufo-Addo, na presença de delegados de todas as regiões do continente africano e da diáspora africana, incluindo de 20 países da Comunidade das Caraíbas (CARICOM), América Latina, América do Norte e Europa, estabelece um paralelismo entre as reparações aos povos africanos e as estabelecidas para as vítimas do Holocausto.
Por seu turno, Lourenço, ao lado de governantes portugueses, justifica a sua opinião da seguinte forma: "se durante os 49 anos de Independência nós não colocamos essa questão, não a colocaremos nunca".
Opinião que está nas antípodas das declarações da vice-presidente da Comissão da UA, Monique Nsanzabaganwa, para quem "estas injustiças (escravatura, colonização e exploração) tiveram um impacto a longo prazo cujas consequências ainda hoje se fazem sentir".
Desta forma, o Presidente angolano, que considera que o "dinamismo e dedicação às grandes causas de África" são importantes para liderar a União Africana, como disse ao felicitar o seu colega da Mauritânia, Mohamed Ould Ghazouani, aquando da sua eleição como presidente da UA, mostra que está contra a causa africana da reparação.
Perante os seus pares africanos, na qualidade de 1º vice-presidente em exercício da Mesa da Assembleia UA, Lourenço perdeu a oportunidade soberana de manifestar a sua oposição à "grande causa de África", a reparação, lema central de 2025, ano em que se propõe liderar a Organização.
Com isso evitaria ambiguidades e incoerência sobre a posição de Angola que parece mudar em função do interlocutor, sendo uma, diante dos colonizadores e outra, diametralmente oposta, para os africanos.
Sem se perceber se é por desconhecimento, bipolaridade política, convicção ideológica, ou algum pacto oculto com Portugal, o Presidente de Angola ignora que a ONU, nomeadamente o Comité de Direitos Humanos defende a adopção de uma vasta gama de medidas de reparação pela escravatura, colonização e discriminação racial.
Ignora também que o comité da ONU para a Eliminação da Discriminação Racial considera que Portugal deve pedir desculpas pelo comércio transatlântico de escravizados e práticas de escravatura nas suas ex-colónias e adoptar "legislação específica para lidar com as consequências duradouras" dessas práticas, bem como "atribuir reparações pelas atrocidades graves e massivas".
Como país africano membro da ONU, Angola não deve descurar que, em Relatório, as Nações Unidas definem medidas concretas para ressarcir os afrodescendentes pelos danos causados pela Escravatura.
E que esse documento, apesar de reconhecer que a avaliação dos danos económicos pode "ser extremamente difícil devido ao longo período de tempo decorrido e à dificuldade de identificar os autores e as vítimas", sublinha que "estas dificuldades não podem servir de base para anular a existência de obrigações legais subjacentes"
Enquanto a UA faz da questão da reparação tema central da sua agenda e a ONU e até a UE defendem a necessidade de reparação, o actual Presidente de Angola junta a sua voz à extrema direita mundial afrofóbica e negrofóbica que, como a francesa Marine Le Pen, considera a colonização de África como "positiva".
Ou o português André Ventura que pergunta "pagar o quê? Pagar a quem? Se nós levámos mundos ao mundo inteiro". Ou ainda Jair Bolsonaro, do Brasil, que põe em causa as consequências da escravatura sobre as vítimas, adulterando a História quando afirma que "o português nem pisava na África. Foram os próprios negros que entregaram os negros".
Neste quesito, Lourenço para além de manifestar a sua oposição às grandes causas de África e sua Sexta Região, a Diáspora, mostra igualmente falta de sintonia com os seus próprios auxiliares, nomeadamente Adão de Almeida, também Chefe da sua Casa Civil, para quem a Agenda africana para as reparações vai permitir aos "nossos países fazer ouvir bem alto a uma só voz, a voz de África e a voz da justiça".
"A exigência de reparações não é uma tentativa de reescrever a História ou de continuar o ciclo de vitimização. É um apelo para reconhecer a verdade inegável e corrigir os erros que ficaram impunes durante demasiado tempo e que continuam a prosperar actualmente", como diz, Nsanzabaganwa, em nome da União Africana.