Em Setembro de 2018, poucos dias depois de substituir José Eduardo dos Santos (JES) na liderança do partido no Poder, Lourenço empenhou-se pessoalmente na trasladação dos restos mortais (da África do Sul para Angola) e organização dos funerais de Arlindo Ben Ben, antigo general da UNITA e ex-adjunto do Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas Angolanas, falecido por doença, em 1998.
Em Luanda, os restos mortais de Ben Ben, sobrinho de Savimbi, foram recebidos com honras militares, diferentemente do que aconteceu com o corpo do antigo Chefe de Estado angolano e Presidente emérito do MPLA, José Eduardo dos Santos, que morreu em Julho de 2022, em Espanha.
Com esse "gesto de boa vontade", na expressão de Alcides Sakala, então porta-voz da UNITA, Lourenço responde a um pedido do então líder da oposição, Isaías Samakuva, assumido savimbista e pessoa das relações de infância e de juventude, uma espécie de "mano mais velho", do Presidente angolano.
O "gesto de boa vontade" incluiu também o frete de um avião particular para transportar de Portugal para Angola familiares do malogrado general angolano, numa altura em que a partir das cidades portuguesas de Lisboa e do Porto havia mais do que um voo diário para Luanda.
Menos de um ano após as exéquias de Ben Ben em território nacional, em Junho de 2019, de novo graças ao envolvimento directo e pessoal de Lourenço, as ossadas de Savimbi conhecem a sua última morada no Lopitanga (província do Bié), de acordo com o desejo da família e da UNITA, 17 anos após a sua morte.
O processo conturbado, inicialmente liderado pelo então chefe da Casa Civil do Presidente da República (PR), general Pedro Sebastião, pelo lado governamental e Isaías Samakuva, pelo Galo Negro, só ficou resolvido numa "reunião de urgência" do Chefe de Estado angolano com o líder da UNITA e alguns dos filhos de Savimbi.
Nessa reunião de desautorização e humilhação do general citado, Samakuva e os descendentes do fundador da UNITA, que se recusavam a acatar as condições propostas por Pedro Sebastião para a concretização dos funerais de Savimbi, aceitaram a solução de João Lourenço, mais próxima das suas pretensões.
Depois dos funerais, em outra audiência, alguns dos filhos de Savimbi agradeceram ao PR "por ter ajudado a desfazer todos os constrangimentos que inviabilizavam a realização de um funeral condigno".
Em Maio último, Lourenço recebeu Samakuva na qualidade de coordenador-geral da Fundação Jonas Savimbi, depois de desentendimentos entre o ministro da Justiça, Marcy Lopes, e os promotores da Fundação sobre as condições para a sua legalização.
Dias depois da audiência e da legalização da Fundação, Samakuva revelou que a Fundação, cujo objectivo principal é "dar bolsas de estudo a jovens, necessitados", vai-se constituir em instituição de utilidade pública e beneficiar de financiamentos do Estado.
Nessa audiência, ainda de acordo com o coordenador-geral da Fundação, o PR revelou que tomou a decisão de atribuir o nome de Jonas Savimbi a uma das artérias de Luanda.
A facilidade com que Samakuva é recebido no palácio presidencial, geralmente a seu pedido, demonstra uma certa ascendência do destacado e legítimo herdeiro político de Savimbi sobre João Lourenço.
Isso mesmo foi confirmado por Samakuva, quando afirmou: "João Lourenço é uma pessoa que eu vi a crescer, éramos vizinhos, eu sou um pouco mais velho que ele, mas os meus irmãos (mais novos), enquanto vizinhos, eram mais próximos, conheço os (seus) pais".
Segundo fonte do MPLA, Lourenço trata o dossier Savimbi como uma "questão pessoal", sem nunca discutir o assunto nas estruturas do partido ou no Conselho de Ministros, no âmbito do processo de Reconciliação Nacional.
Sempre diligente em questões relacionadas com o legado de Savimbi, antigo adversário/inimigo do MPLA, Lourenço mostra, no entanto, com acções e omissões, aversão à promoção dos feitos do seu antecessor.
JES é apagado ou ignorado em iniciativas históricas do partido e do Estado, incluindo nas datas do seu nascimento e da sua morte. Imagens suas foram retiradas de paredes de vários edifícios do partido, incluindo do "Kremlin", sede do MPLA.
Se por um lado, herdeiros políticos e biológicos de Savimbi sempre que solicitam são recebidos imediatamente por João Lourenço, por outro, membros do "Conselho de Honra" e históricos do MPLA, como Fernando Dias dos Santos "Nandó", aguardam semanas ou meses para uma conversa com líder sobre o partido e o País.
O consulado de Lourenço fica também marcado pelo afastamento de Angola dos seus tradicionais aliados, nomeadamente a Rússia e a aproximação aos ocidentais, particularmente, os EUA que durante décadas apoiaram, financiaram e protegeram a UNITA de Jonas Savimbi.
No âmbito dessa estratégia, João Lourenço retirou Angola da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), estrutura de que fazem parte a Rússia, México, Cazaquistão, Azerbaijão, Bahrein, Brunei, Malásia, Omã, Sudão e Sudão do Sul (membros não oficiais), que com os oficiais formam a OPEP+.
No quadro dessa cambalhota diplomática e obcecado por encontros com o Presidente americano, mesmo que fugazes, Lourenço esquiva-se de participar em cimeiras com os líderes da Rússia e da China ou em encontros de organizações em que estes dois países são preponderantes, mormente cimeiras dos BRICS.
Afastando-se do Sul global, a nova política externa de Angola está mais próxima do legado de Savimbi que de José Eduardo dos Santos ou de Agostinho Neto. Estes dois dificilmente votariam contra Moscovo, "aliado natural" do MPLA, como fez João Lourenço numa resolução da ONU sobre a agressão russa à Ucrânia.
A aliança com os ocidentais também abrange questões africanas. Angola aderiu ao "Apartheid de viagens" (expressão cunhada por António Guterres, secretário-geral da ONU), decretado em 2021 por países ocidentais contra a África Austral.
Durante a pandemia, países ocidentais decidiram fechar as suas fronteiras e isolar metade dos Estados da SADC, supostamente para impedir a entrada em seus territórios da então nova variante do vírus da COVID-19, a Ómicron.
Angola seguiu as orientações ocidentais e, obedientemente, encerrou as fronteiras com países da sua região, concretamente Namíbia, Botswana, África do Sul, Moçambique, Zimbabwe, Eswatini e Malawi.
Por outro lado, enquanto a União Africana decretou 2025 como ano da "Justiça para os africanos e os afrodescendentes por meio de indemnizações", Lourenço garantiu ao governo luso que Angola "não vai pedir nunca" a Portugal reparação pela escravatura e colonização.
Perante este contexto, a "guerra civil" no MPLA entre o Presidente e os seus contestatários, para além de luta pelo Poder, é igualmente programática. De um lado está um Presidente, cujo maior feito da sua governação é a "reabilitação" de Jonas Savimbi, e de outro, os defensores de José Eduardo dos Santos, como figura maior do pós-Independência.
Com medo de ser vítima de represálias, depois de abandonar o poder, prática normalizada na política angolana, o Presidente mostra-se preocupado com a sua sobrevivência política e física, bem como da sua família. Por isso, tenta encontrar fórmulas para se manter no poder ou ter um ascendente sobre o próximo PR.
Para tal, tem de impedir o "assalto" ao Poder posto em marcha por eduardistas que se recusam a aceitar a primazia dada ao legado de Savimbi em detrimento do seu "patrono", JES, o homem que liderou o País e o MPLA durante 38 e 39 anos, respectivamente.
Nessa "guerra civil", João Lourenço tem a desvantagem de ser o rosto da miséria e da repressão actuais no País, situação que os seus adversários internos exploram como trunfo para travar a sua ambição de determinar a sucessão.
Nesses "desvios" da linha tradicional do MPLA, João Lourenço acarinha os filhos de Savimbi e projectos em seu nome ao mesmo tempo que persegue JES, mesmo depois de morto, bem como os seus herdeiros biológicos e políticos. E isto está na base da luta dos contestatários, uma tentativa de "salvação" de um MPLA que há muito ignora os problemas do Povo.