A escritora moçambicana, primeira e única mulher negra galardoada com tal distinção, em 34 anos do Prémio Camões, sublinhou que, para a língua portuguesa ser "definitivamente nossa, precisa de um tratamento, de uma limpeza, de uma descolonização".
Criado por Brasil e Portugal, o Prémio Camões, maior distinção da literatura em língua portuguesa, no valor de 100 mil euros (contribuição dividida em partes iguais pelos Governos dos dois países), presta homenagem a um escritor ou escritora que, pela sua obra, contribua para o "enriquecimento e projecção do património literário e cultural de língua portuguesa".
"É na língua portuguesa que eu expresso os meus sentimentos e me afirmo diante do mundo. Mas eu gostaria de que a língua fosse de todos", afirmou Paulina Chiziane, denunciando "algumas especificidades" coloniais discriminatórias que se encontram em dicionários de português.
E apontou palavras como "catinga", definida como "cheiro nauseabundo característico da raça negra", "matriarcado", descrita como "costume tribal africano", em contraposição com "patriarcado", "tradição heróica dos patriarcas" e "palhota", apresentada como "habitação rústica caraterística dos negros".
O que Paulina Chiziane defendeu, na sua corajosa e frontal intervenção, em Lisboa, é a libertação de uma língua que, durante séculos, foi usada como instrumento de discriminação, humilhação e subjugação de povos e países.
Descolonizar é reconhecer, por um lado, as diferenças culturais entre países que usam a mesma língua, muitos dos quais estados multiétnicos e multilingues, e, por outro, que o desenvolvimento da língua é fruto da expressão cultural e criatividade dos povos e não de burocracias definidas em gabinetes de políticos ciosos em controlar os falantes dessa língua, numa espécie de repressão.
Descolonizar passa pela defesa de "uma língua que não se restringe às formalidades e às decisões dos Governos. Mas uma língua que os povos, seus falantes, usam para comunicar. Ainda que a falem com múltiplas variantes ou sotaques diversos", como reconheceu o primeiro-ministro António Costa ao entregar o prémio à galardoada.
Passa, igualmente, por assumir que a própria língua portuguesa, formada a partir do latim, é de origem indo-europeia que, ao longo dos tempos, se foi misturando com expressões árabes de povos que outrora habitaram os territórios que hoje constituem Portugal, bem como com vocábulos africanos.
Passa ainda por convidar todos a aprender línguas africanas, como faz Paulina Chiziane, quando afirma: "O império colonial dizia "eu tenho, mas tu não tens", e não é justo. Tenho uma língua materna e uma que me foi dada. Por que tenho de aprender a que me é dada? E por que (eles) não aprendem a minha?"
Tal como fez, um dia antes, em Vila Real, Sóstenes Rego, especialista em língua, cultura e literatura nyungwe, uma das línguas bantu moçambicanas, no XXV EIRI (Encontro Internacional de Reflexão e Investigação), na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Portugal, quem quer descolonizar deve denunciar a discriminação de palavras de origem bantu, nos dicionários de português, onde "raríssimas" vezes são identificadas como tal.
O linguista moçambicano alerta que "quando o fazem, dizem origem bantu, como se o bantu fosse uma língua, quando é um grupo de línguas. Do mesmo modo, acontece com o tupi, que aparece como língua. E, muito excepcionalmente, aparece o kimbundu ou umbundu para toda a África Austral. Kikongo ainda menos. Outras línguas são simplesmente ignoradas".
Descolonizar é reivindicar igualdade no relacionamento entre falantes da mesma língua, sem discriminação ou menorização de uns por outros, através de instrumentos como dicionários, acordos ou uso de termos discriminatórios e humilhantes para africanos e negros que contribuem para aprofundar as distâncias entre uns e outros.
Descolonizar exige o uso das mesmas expressões para situações iguais e o combate à discriminação que trata os europeus residentes em África como expatriados, enquanto os africanos na Europa são imigrantes, como se a emigração fosse exclusiva dos povos do Sul.
A descolonização da língua passa invariavelmente pela descolonização da historiografia portuguesa, ainda entupida de vocábulos coloniais como "descobrimentos" de povos e territórios que tinham o próprio sistema de organização política e social.
"Somos usurpados, os africanos, por estes e por aqueles, porque os rastros da nossa história foram apagados através dos tempos. Estamos à deriva, não sabemos bem quem somos e, por isso, somos facilmente manipulados pelo mundo, lamentou Chiziane.
Quem quer descolonizar deve deixar de olhar para a História de África de forma eurocêntrica, tendo como referência a invasão, ocupação, exploração, colonização e descolonização europeias.
Deve ainda reformar os conteúdos do ensino assente no pensamento colonial que inferioriza os povos africanos e outros povos não-europeus. E, consequentemente, deve defender o desmantelamento do sistema colonial ainda prevalecente no relacionamento entre países.
E, com urgência, deve libertar a investigação e a academia desse sistema colonial que ignora a civilização egípcia, africana, como precursora de várias civilizações, incluindo a grega.
Igualmente necessita de reconhecer e ensinar às novas gerações que, como berço da humanidade, África, como lembra Joseph Ki-Zerbo, em Para quando África, entrevista de René Holenstein, é também "o berço de invenções fundamentais constitutivas da espécie humana durante centenas de milhares de anos".
E recordar e ensinar também que foi a partir de África que o homem erectus, graças à descoberta do fogo, pode emigrar para a Europa.
Descolonizar é, sem dúvida, estudar e sublinhar a resistência dos Povos africanos à dominação colonial e às inúmeras batalhas dessa resistência dirigidas com bravura por heróis e heroínas como Njinga Mbandi, Chaka, Ngungunhane ou Amílcar Cabral.
Descolonizar é, certamente, assumir e difundir o determinante papel da Luta dos Movimentos de Libertação de Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e de Moçambique, para a efectivação do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, que desembocou na Revolução dos Cravos.
Descolonizar passa por incluir nos programas de ensino o estudo das culturas, pensadores clássicos e contemporâneos, bem como outros intelectuais africanos, independentemente da sua maior ou menor relação familiar com a Europa.
É, naturalmente, estabelecer um relacionamento político saudável, de igual para igual, mutuamente vantajoso, assente na solidariedade, no respeito mútuo, sem subserviência nem chantagens políticas.
Para tal, é preciso adoptar uma linguagem político-diplomática sem complexos de superioridade e sem que ninguém se apresente como o imperador a quem os outros devem obediência.
Descolonizar é abandonar o paternalismo nas relações bilaterais e multilaterais e deixar que cada um, soberana e dignamente, defina os seus relacionamentos internacionais, sem a obrigatoriedade de usar uma porta pré-estabelecida, numa espécie de réplica político-diplomática da expressão bíblica "Eu (Jesus Cristo) sou o caminho e ninguém chega ao Pai sem passar por mim".
Descolonizar é ainda combater as desigualdades raciais e abandonar a hierarquização das raças ainda prevalecente em países da CPLP, como pesada herança do colonialismo e da escravatura.
É, obviamente, abandonar as políticas proteccionistas e deixar de impor aos outros a sua agenda e posicionamento perante acontecimentos do mundo como guerras, pandemias e outras catástrofes, como se a única visão válida fosse a ocidental.
É, por um lado, respeitar a soberania de cada Estado em matéria de política interna e externa e, por outro, recusar o papel de depósito seguro de recursos financeiros desviados e transferidos por corruptos, fazendo lembrar a transferência de riquezas das colónias para o desenvolvimento da Metrópole.
Descolonizar é abandonar o princípio da superioridade moral e civilizacional ocidental, como forma de racismo nas relações entre países e compreender que mudar a História das relações euro-africanas é um acto colectivo que passa pela tomada de consciência dos decisores políticos das várias partes intervenientes neste processo.

De igual modo, descolonizar é perceber que, na expressão de Patrice Lumumba, na última carta à sua mulher, Pauline Opango, poucos dias antes do seu bárbaro assassinato, "a História revelará um dia o seu veredicto, mas não será a História que se ensinará em Bruxelas, Paris, Washington ou nas Nações Unidas; será aquela que se ensinará nos países libertados do jugo do colonialismo e das suas marionetas". n